Este não é meu estilo costumeiro de escrita, e é a parte dois de um conto anterior, cujo link está abaixo.
 
O Eleito II


     “E daí ele estava de volta à frente do homem de longas vestes brancas.      Com os olhos profundamente tristes, sem nem mesmo mencionar toda a sua      longa lista de renúncias e de boas obras, o homem dirigiu-se a ele e fez-lhe      apenas uma pergunta:

     ‘Amigo... ONDE ESTÁ SUA ESPOSA?’

     E, dando-lhe um último olhar de tristeza, o homem voltou-se, dirigiu-se ao      portal dourado e fechou-lhe as portas.”
               O Eleito I, 2010 - http://www.dalvalynch.net/visualizar.php?idt=2174841)

 
Atônito, ele se viu afastado dos portais dourados e caindo, caindo, até aterrissar em um lugar escuro, coberto de lama. A lama o engolfou, cercando-o por todos os lados, aprisionando-o e impedindo seus movimentos. Não havia uma só pessoa em vista para socorrê-lo. Ele não sabia o que fazer.

Com muito esforço, conseguiu engatinhar para fora do lodaçal. As roupas em frangalhos, as mãos e os pés feridos, as unhas quebradas. Sentou-se numa pedra e olhou a desolação ao seu redor. O céu e a terra se confundiam, e raios esporádicos cortavam a escuridão. Não havia nenhum som.

“Onde será que estou?”

Ele não estava com medo. Estava atônito. Esperando cruzar os portais dourados depois da morte, sendo negado e lançado naquele lamaçal... Será que estava no Inferno? E de repente pensou na família que abandonara para “servir a Deus”. Nos filhos sendo espancados por estranhos para que “obedecessem a Deus”. Na esposa implorando para voltar para casa – a esposa pecadora, que havia se recusado a “seguir a Deus” e “obedecer a liderança do Senhor”, então merecera ser excomungada da “Assembleia dos Santos”.

Merecera? Será que ela merecera? E de repente foi como que se um mundo inteiramente novo se abrisse aos seus olhos, e ele viu sua vida não sob a perspectiva de um “Eleito do Senhor”, mas sob a perspectiva de um homem duro e implacável, que sacrificara tudo e todos por sua crença, que acreditara nas mentiras de líderes gananciosos, que seguira ideias e mitos sem coloca-los em escrutínio. E a enormidade de sua vida de engano tomou conta dele, e ele caiu de joelhos, implorando piedade a quem quer que seja que estivesse em controle de sua vida, pedindo perdão à família e amigos a quem seu egoísmo havia ferido.

A partir daquele momento, ele se arrastou pelo terreno inóspito, em busca de uma saída, em busca de um abrigo, de comida, de água potável. Contudo, os dias se passaram, e, apesar da fome e da sede, ele continuava sozinho e sem encontrar coisa nenhuma – e sem que morresse, é claro. Afinal, já estava morto! Muitas e muitas vezes, sentava-se no chão, o rosto escondido nas mãos, chorando e implorando aos filhos e à esposa que o perdoassem. Implorando a alguma entidade ausente que tivesse misericórdia, e desse-lhe outra chance. Mas os dias se transformaram em meses, os meses em anos...

Um dia, cansado do nada, ele adormeceu deitado no chão duro e sujo, e teve um sonho. Em seu sonho, viu a esposa sentada numa cozinha branca, com um livro nas mãos. Mas ela não estava lendo. Seus olhos estavam perdidos no espaço, como se vissem algo que não estava ali... E, de repente, ele percebeu que ela podia vê-lo naquele exato instante, naquele exato lugar onde ele estava. Chorando, ele lhe estendeu os braços, sem palavras possíveis, tentando romper a barreira que os separava.

E foi então que ela chorou. Sozinha na sua cozinha branca, ela começou a rezar. Rezar a quem? Ela nem sabia. Apenas rezou.

“Por favor, por favor ajude meu Amado... Ele está no escuro, sozinho! Por favor perdoe-o! Eu tenho certeza que ele pode ver tudo o que fez e deixou de fazer. Tenho certeza que ele fez tudo pensando estar obedecendo às leis de Deus. Ele estava seguindo uma fé sem misericórdia, um Deus sanguinário com líderes críticos e implacáveis. Por favor, por favor, perdoe-o! Por favor encubra-o com meu amor, fortaleça-o, resgate-o de onde quer que ele esteja! Eu posso sentir que ele agora sabe que era tudo mentira...”

Ele despertou e olhou ao seu redor. Uma luz difusa aproximou-se lentamente, até que dois braços vestidos de branco se estenderam, e ele se agarrou às mãos que o levantaram da lama. E ele olhou no fundo de dois olhos cheios de paz e misericórdia, e de repente tudo parecia fazer sentido. Uma grande felicidade o encheu. Amparado pelo homem desconhecido, ele se dirigiu aos grandes portais dourados, que se materializaram à sua frente. Voltou-se ao seu companheiro, perguntando-lhe:

 “Por que agora? O que foi que mudou, depois de tanto tempo?”

O homem apenas sorriu e lhe respondeu:

“Amigo, sua esposa o perdoou...”

 

 
Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 26/09/2013
Reeditado em 03/02/2020
Código do texto: T4498857
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