Luz e Sombra

Contam-se estórias mirabolantes acerca de determinados ídolos, compondo uma história humana cheia de criatividade. Entre os diversos seres que habitam o imaginário, poderíamos mencionar inumeráveis exemplos, que povoam a memória de cada um de nós. Aqui tratamos de um casal de irmãs, que por seres tão distintas, acabaram se tornando tão próximas em suas experiências.

Não sabemos dizer qual das duas nasceu primeiro, alguns dizem que vieram ao mundo juntas, sem um milésimo de segundo — a mais ou a menos de diferença —, o que deixa uma intrigante perspectiva a respeito de tais criaturas. Os pais são também desconhecidos, compondo mais uma gama dos órfãos que vivem nesse planeta, quase filhos de nada, se não fosse uma necessidade biológica de concepção de todo ser vivente. Pormenores que não diminuem a graciosidade dessas pequenas. São chamadas no diminutivo, porque seguimos aquele roteiro de começar pelo ciclo corriqueiro da vida, em que vamos desenvolvendo. Claro que poderíamos pular algumas etapas, quem sabe começar de trás ara frente como tão bem fizeram Machado de Assis ou Scott Fitzgerald.

Luz parece ter desejado desde o início os holofotes, embora há quem diga que é o próprio holofote, ou a lâmpada que clareia esse apetrecho de iluminação. Seus cabelos eram como raios, que chegavam a fazer arder às vistas de quem ousasse afrontar as flamejantes madeixas. Sua pele era tão clara que chegava a ter feições cadavéricas, ou angelicais, como um poeta uma vez a descreveu. Emanava um calor que era capaz tanto de aquecer o frio causado pelo inverno em almas mais frágeis, quanto provocar graves queimaduras em que a agarrasse de forma impetuosa. O sorriso parecia um mármore que reluz, na verdade quase um diamante, pelo caráter vítreo. Sua sombra era um rastro de luz que se desprendiam, um feixe que era deixado como pista de sua passagem incendiária.

Sua irmã — dizemos assim, pela proximidade inexplicável que só pode ser comparada ao parentesco —, Sombra, com sua tez escura, que parecia engolir qualquer coisa que entrasse em contato com sua imensidão abissal, abria os olhos como duas ônix, a ponto de preencher as órbitas de quem desejasse afrontá-la com o olhar. Seus cabelos eram uma extensão que não contrastava com o restante do corpo, podendo verificar seu volume, com um leve balançar, que desprendia fios, feito contornos que escapam de uma pintura. Vivia de boca aberta, mas não para mostrar os dentes e sim para que vejam aquele poço que se abre e não deixa que saibam a diferença entre o interior e o exterior, há quem diga que pode andar ao avesso sem que consigamos perceber a diferença. Dizem que só vive gargalhando. Eis a extensão de suas trevas.

Quando as duas estão juntas, promovem algo estupendo. De um lado, a visão que chega a agredir da imagem florescente que capta as primeiras impressões de quem possa vislumbrá-la. Mas a sua companheira, com seu negrume, desperta o desejo pelo desconhecido e o medo de quem teme o que não consegue vislumbrar de imediato. Quando dançam, acabam se misturando, a ponto da luminosidade cortar as trevas e as trevas causarem fissuras no corpo luminoso. As mãos se tocam e quase se desfazem, mas acabam sendo concentradas em uma espécie de equilíbrio entre extremos. Também ousam se beijarem, com aqueles lábios negros engolindo os raios luminosos e aquela boca em chamas que parece consumir aquelas sombras insinuantes. Alguns atestam que essa é a prova de que não são irmãs. Mas como são antigas estas pequenas e em culturas de outrora era comum o relacionamento mais íntimo entre parentes, mesmo irmãos e não era algo considerado incestuoso e consequentemente pecaminoso, continuamos chamando-as de irmãs, sem nenhum prejuízo.

São enamoradas, que parecem ignorar algo além da companhia uma da outra. Precisar a idade dessas criaturas seria um equívoco. Podemos apenas deduzir que o tempo delas é diferente dos de outros seres viventes. Se aproximarmos bem uma da outra, observamos que são uma cópia, com a diferença cromática. Já houve quem propusesse a fusão, criando um ser que imaginaram, seria magnífico. Mas elas são suficientes no estado em que se encontram e adoram se completarem, não tendo a pretensão de se bastarem, já que a alegria estar na busca desse complemento eterno. Suas brincadeiras favoritas são as de busca, perseguição, porque são movidas por esse desejo de força compartilhada. Quando se encontram é sempre perder e ganhar, deixando a balança em suspenso, com essa tensão constante. Sua relação é estéril no sentido de coito, já que sua semelhança de gênero não permite uma concepção. Mas não se importam com isso, mesmo que já tenham sido tentadas por ofertas de quem desejava ver nascer um fruto dessa relação.

O próprio mar sentiu-se tomado por um desejo infinito, dizendo-se enamorado. Não sendo correspondido, dizem as antigas culturas, acabou por se precipitar frequentemente contra as rochas, como forma de purgação, tentando apaziguar com a dor física a ferida amorosa que se aprofunda em seu peito. Feito entidades divinas, as irmãs não se prendem a valores da natureza humana. Tanto que chegam a flutuar, como se a luz de uma e a escuridão da outra, não fossem muito atrativas a força da gravidade, que cede a elas. Podem também sofrer dilatação, se espalhando a grandes distâncias, cobrindo todo o céu ou a terra. Uma vira às costas e a outra surge, de forma acintosa. A Luz não existe sem fazer sombra e a Sombra adora quando a luz a surpreende. Um antigo cientista, tentou uma vez dizer que a Sombra era mais velha, o que provocou uma risada arteira na Luz, que deixou o douto constrangido.

A Luz andava atrás da Sombra, para apagar o rastro da irmã, apenas por travessura, já que era difícil observar pegadas negras no escuro. Não pareciam dormir, os sonhos de uma era a vivência da outra. Sem sexo e sem pudor, com corpos que não se cobrem, mas mostram a força de sua energia magnífica, que emana e alimenta a curiosidade de expectadores. E qualquer um de nós desejar contemplar essas faceiras entidades, basta acender uma luz e observar o fenômeno de contraste entre uma e outra, como uma aparece a outra se esconde e como são alegres e emocionantes, quando admiradas. A magia está sempre a nossa volta, basta apreciarmos um instante, nos desvencilhando de tudo aquilo que nos impede de enxergar com os olhos da sensibilidade.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 11/07/2013
Código do texto: T4382833
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