Contos dos Subterrâneos - Lírio
A noite já caíra. Segundo as contas de Lílian, limitadas pela sua pouca idade, mas ainda assim mais ou menos exatas, deviam ser sete horas. Era tarde, portanto, e seus pais já se haviam recolhido, junto com seu único irmão, Dough. Não era, de modo algum, horário para uma criança de apenas seis anos estar fora da cama – e, ademais, sua mãe lhe havia advertido contra os inúmeros perigos que a aguardavam lá em cima; fora deveras aterrorizante. Entretanto, Lílian era extremamente curiosa e, por vezes, desobediente demais para o seu próprio bem.
Em silêncio, pulou para fora da cama, estremecendo com o contato gelado em seus pezinhos nus. Vestiu seu sobretudo mais quente, um com uma linda estampa de triângulos que recebera do Capitão de sua Área na Cota do seu sexto aniversário – bonito, mas sem cor demais para o gosto de Lílian – e saiu do pequeno quarto que lhe coubera na casa.
Na sala – um círculo perfeito que era o único cômodo grande o suficiente na habitação para caber inteira sua pequena família de quatro pessoas – Lílian pegou sua máscara de oxigênio, sem a qual não poderia respirar na Superfície. Ela tivera a sorte de poder escolher a sua, porque naquele ano doze pessoas morreram em um vazamento de gás na Área H9, e havia máscaras a mais na Distribuição. A pequena menina conseguira uma linda, com uma espécie de tromba e uma lente tão grossa para os olhos que os aumentavam ao menos três vezes. No todo, ela achava que se parecia com algum daqueles animais estranhos que, segundo os mais velhos, viviam na Superfície meio século atrás, e sentia muito orgulho disso.
Meio incerta, Lílian tocou a maçaneta da porta. Até ali fora fácil sair sem ser notada, porque em geral sua família não acordava durante a noite. Lá fora, porém, havia duas dezenas de guardas patrulhando a Área, com ordens para atirar em qualquer um que saísse depois do toque de recolher, mesmo que fosse uma adorável menina de seis anos, com adoráveis cabelos pretos rebeldes que se enchiam de nós ao menor sinal de movimento e adoráveis olhos azuis imensos. A pequena quase pensou em desistir, mas havia centenas de coisas para ver lá em cima; Lílian jamais vira a Superfície à noite, sob a luz da lua. Nos subterrâneos sempre havia, a qualquer hora do dia, a mesmíssima luz artificial amarelada que causava um imenso desconforto aos olhos e atrapalhava o sono de Lílian; talvez por isso ela tivesse olheiras tão profundas mesmo sendo tão jovem.
Foi a luz amarela que fez Lílian decidir. Ao menos uma vez em sua curta vida ela gostaria de ver a noite como deveria ser: escura e fria. Nos subterrâneos costumava imperar um calor apenas suportável.
Com um pouco de dificuldade, pondo-se na ponta dos pés, Lílian girou a chave e empurrou a porta, que se abriu para fora sem um único rangido. Nada tinha som ou cor lá embaixo, nem mesmo as portas velhas. Pôs primeiro a cabeça para fora, espiando para ambos os lados com seus enormes olhos azuis. Não havia nenhum guarda à vista, mas Lílian esperou muitos minutos mais antes de sair e fechar novamente a porta. Agora, um imenso corredor branco, de paredes curvadas como um enorme cilindro, se estendia sem fim para a esquerda e para a direita. A menina não fazia a menor ideia de para onde devia ir, então não perdeu tempo pensando; virou à esquerda e correu o máximo que podia com suas pernas curtas. Não havia nichos, ornamentos ou relevo que quebrassem a lisa monotonia do corredor e fornecessem um bom esconderijo se porventura aparecesse um guarda em seu caminho.
O túnel tinha centenas de ramificações, pelas quais Lílian embarafustou de forma aleatória, sem de fato prestar muita atenção em seu caminho; como faria para voltar era algo a se pensar depois. Em sua corrida, ela passou por centenas de portas idênticas, que guardavam habitações que ela sabia serem também idênticas à sua; a uniformidade era parte importante da vida ali embaixo, pois de outro modo não haveria como o Governo controlar os muitos milhares de seres humanos que ali viviam.
Mais de uma hora se passou sem que Lílian encontrasse a saída que procurava. Também não encontrara nenhum guarda, o que lhe pareceu ao mesmo tempo uma grande sorte e um imenso absurdo. Por fim, ela entrou em um corredor absolutamente igual aos outros, mas que terminava bruscamente em uma parede tão branca quanto tudo ali. Lílian sorriu. Aquele era o lugar.
Desde os cinco anos de idade, as crianças dos subterrâneos eram levadas todos os anos em grupo para a Superfície, para presenciar a desgraça que a povoava e lembrar-se de jamais ir até ali desacompanhadas, sob nenhuma circunstância. As imagens do terror que o lugar inspirava deviam ficar coladas em suas consciências para sempre, como estavam nas de seus pais. Lílian, que já estivera na Superfície duas vezes, não tivera medo. Ao contrário: achara-a adorável, e sentira uma imensa tristeza por saber que seus avós e as gerações anteriores a haviam destruído e infectado de modo irreversível.
Cautelosa, Lílian esticou sua pequena mão e tocou a parede, tateando em busca da abertura. Quando encontrou a pequena reentrância que procurava, pressionou-a até fazer descer uma escada cor de osso cujo fim ela não podia ver. Quase pulou de alegria por ter conseguido, mas havia algo fazendo cócegas em sua mente – era muito estranho não haver encontrado nenhum guarda patrulhando aquela Área, principalmente na abertura para a Superfície. Ela era pequena, porém sensata – exigências da vida cheia de normas rígidas e tradições inquebrantáveis dos subterrâneos.
Refletiu dois minutos; por fim, decidiu prosseguir. O que quer que estivesse acontecendo com a guarda, não estava a seu alcance fazer coisa alguma. Essa era a sua única opção, a não ser que voltasse – e Lílian sequer sabia como fazer isso.
Subiu os primeiros degraus e parou, apurando olhos e ouvidos. Como nada aconteceu, continuou a subida, mais confiante, ansiosa por ver algo que não fosse brancura e aquela agourenta luz amarela dos subterrâneos.
A subida parecia interminável. Ninguém costumava andar muito ali; nem mesmo havia razão para isso. As pernas pequeninas de Lílian ardiam de cansaço, e as pausas tornaram-se cada vez mais frequentes e longas. Seus olhos já ameaçavam fechar quando ela chegou ao topo da escadaria, que terminava em mais uma daquelas portas padronizadas. Essa, porém, não se abria para frente, mas para cima. Lílian por duas vezes quase caiu tentando abri-la. Quando conseguiu, uma lufada de ar fresco lhe arrepiou os cabelos escuros. Em contraste com a claridade artificial lá embaixo, a Superfície era de um escuro impenetrável.
Os olhos de Lílian encheram-se de água e sua respiração ficou difícil. Apressada e com uma primeira pontada de medo, ela posicionou sua linda máscara no rosto, verificando várias vezes se a correia estava bem presa ao redor de sua cabeça. Sabia, já que as guias das visitas à Superfície não se cansavam de insistir nisso, que poucos minutos daquele ar seriam suficientes para morrer. Estremeceu ao pensar nisso; não tinha medo de muita coisa, mas a morte lhe assustava porque não sabia o que havia depois dela. Lílian tinha medo de acabar, e tinha ainda mais medo do esquecimento.
Depois de ajeitar a máscara pela última vez, a criança tocou o primeiro pé na terra seca. Terra. Só ali em cima existia tal coisa, e todos os alimentos que consumiam eram cultivados por hidroponia, na água. Lílian achava bonito, mas seu avô, que era a pessoa mais extraordinária de todo o mundo, lhe contara que em seu tempo de criança a terra era escura, úmida e fértil, e fazia brotar qualquer coisa que se plantasse.
Seu avô... a garganta de Lílian doeu ao pensar nele. Seu avô, que lhe amara mais que a todos, que lhe dera o nome, que lhe embalara e lhe contara tudo o que sabia, fora levado embora. O Governo o transferira para outra Área, o mais distante possível, e a família não tinha autorização para vê-lo. Quando Lílian, aos prantos, indagara a razão, o pai lhe disse apenas que seu avô era um contador de histórias bom demais para seu próprio bem, e que a menina devia esquecer todos as coisas que ele inventara para lhe dizer como se fossem verdades.
À época, Lílian não contestara. O pai sempre tinha razão, e não admitia discordâncias. Fingira esquecer, e seu pai ficou suficientemente satisfeito, mas no fundo sabia que seu avô jamais mentiria para ela. Tudo o que ele lhe dissera era verdade, ela tinha certeza.
Sacudindo a cabeça para não chorar, já que era impossível tirar a máscara para secar as lágrimas e isso atrapalharia sua visão, Lílian afastou-se da abertura, um pouco receosa. Por precaução, decidiu não fechá-la, para ter certeza de que poderia descer quando quisesse.
A menina não procurava nada em específico ali; apenas queria fugir da claustrofóbica realidade dos subterrâneos e ver a lua. Seu avô lhe dissera que a lua influenciava quase todos os aspectos da natureza lá em cima, e que tornara-se objeto de encanto dos homens. Centenas de poemas e canções foram feitos em sua homenagem, segundo o avô. Lílian não era capaz de imaginar centenas de poesias e músicas, porque as únicas que conhecia eram as poucas dezenas que Vovô lhe mostrara às escondidas, que ele mesmo compusera. Na verdade, ela levara muito tempo pensando no motivo por que alguém faria poesias, já que não tinham nenhuma função aparente. Talvez aquele fosse o momento de fazer um teste.
Apertando os olhos com força para se lembrar, Lílian recitou um dos poemas de Vovô. Ela sabia que não poderia repetir todas as palavras, porque o ouvira há tempos, mas fez o melhor que pode.
Quando terminou, sentindo-se um pouco tola, suas palavras flutuaram no ar silencioso. Tudo pareceu vibrar com energia renovada, e o azul da lua, agora, adquiriu uma nova profundidade. Talvez fosse apenas impressão, mas mesmo assim Lílian desejou ser tocada por aquela luz tão diferente da que havia em seu mundo. Puxou até os ombros as mangas de seu sobretudo, ao qual a lua dera uma cor azulada muito mais bonita do que seu cinzento original, expondo seus braços.
Seus olhos se arregalaram de espanto e prazer. Como tudo o mais nos subterrâneos, Lílian era de um branco pálido; sob a luz da lua, sua pele sem graça agora tinha um belíssimo tom de azul que ela desejou conservar para sempre. Depois de dois segundos de acanhada hesitação, ela arrancou o sobretudo e o macacão inteiriço que usava, ficando apenas com os sapatos e a máscara. Queria ver toda a sua pele brilhar daquela cor, nem que fosse só uma vez. Para quem vivia cansada do calor dos subterrâneos, o vento frio não era incômodo suficiente.
Sem toda aquela roupa, Lílian sentiu-se muito mais livre. Não tinha mesmo muito senso de direção, sobretudo naquela noite, então saiu andando meio sem rumo, ansiosa para ver tudo que pudesse. Todos os perigos que as pessoas diziam existir ali não despertaram muito mais que uma fagulha de curiosidade na menina; eram meros detalhes diante de tantas insuspeitas belezas a descobrir, e ademais até agora ela não vira coisa alguma que devesse temer. Desse modo, seguiu sem medo levantando poeira com seus pés pequenos.
Cada passo revelava a Lílian coisas novas para olhar. A paisagem, ela reconheceu, era sombria. Árvores mortas e retorcidas – que ela só conhecia, novamente, graças a Vovô – eram como grandes ossadas enegrecidas de criaturas bizarras que emergiam do chão, e mal podiam ser distinguidas do negrume do céu. As pessoas achavam bastante cômodo e suficientemente satisfatório viver nos subterrâneos padronizados, e temiam o diferente. Bastou uma pequena semente, plantada por seu avô na fértil terra da curiosidade de Lílian, entretanto, para que ela fosse incapaz de se contentar com a branca monotonia de seu cotidiano. O ambiente que agora a cercava, portanto, lhe despertava mais identidade que estranhamento.
Lílian quis andar mais, mas percorrera quilômetros demais naquele dia, e estava esgotada. Quis voltar para a abertura, mas acabou se perdendo com tantos diferentes caminhos a seguir. Não se desesperou; mesmo que pudesse chegar na abertura, era incapaz de voltar para sua casa de qualquer forma. Procurou o caminho certo devagar, observando atentamente tudo o que se revelava aos seus olhos.
Uns cinco minutos de caminhada revelaram um leve borrão de cor em sua visão periférica. Àquela hora, o azul prateado da lua emprestava a todas as coisas cores frias e escuras, mas à sua direita surgiu uma pequena mancha de verde, rosa e amarelo, cercada de outras manchas esbranquiçadas. Lílian aproximou-se devagar, curiosa. As tais manchas esbranquiçadas, maiores, revelaram-se primeiro: dois ou três crânios de algum animal pequeno – que animal ela não poderia dizer, já que conhecia os animais apenas pelos relatos do avô. Ela não quis imaginar que fossem humanos, porque lhe parecia doloroso pensar que alguém semelhante a ela estivesse ali, abandonado e esquecido. Sem nome. Sem rosto. Sem memória.
Essas reflexões logo se perderam, e um nó apertado formou-se em sua garganta, impedindo sua respiração por três segundos, quando, mais próxima, Lílian reconheceu o pequeno borrão colorido. Era uma flor.
Reverente, ela se ajoelhou na terra. Não era uma apenas uma flor. Não, senhor, aquela não era uma flor qualquer. Era a flor favorita de sua avó, aquela que seu avô, provando seu amor por ambas, escolhera para seu nome. Era um lírio. Lílian a reconheceria em qualquer lugar, apesar de tê-la visto apenas uma vez, em uma foto que Vovô contrabandeara para ela.
Minutos inteiros se passaram antes que ela pudesse realmente pensar. O que poderia, afinal, pensar diante de um universo inteiro de sentimentos naquela forma tão pequena? Ali estava a prova do que sempre soubera: seu avô jamais mentira. A terra podia, sim, fazer nascer a vida de dentro de uma minúscula semente; não apenas o fazia antes, quando havia nutrientes e água suficientes em todo o planeta, mas o fazia agora. A vida ignorava as adversidades e demonstrava que é infinitamente maior que os humanos e seu ego, sua prepotente tentativa de destruí-la em nome do dinheiro.
Ali estava, também, o que ela era. "Essa sou eu", pensou ela. "Vovô sabia quando escolheu esse nome. Pequena, colorida... e teimosa. Essa sou eu."
Sentindo que seu corpo miúdo não era suficiente para comportar tanta emoção, Lílian sentou-se no chão e chorou. Chorou sem se importar com o fato de as lágrimas embaçarem as lentes da máscara e atrapalharem sua visão. Chorou porque compreendeu: seu avô fora levado, mas falava com ela. Seis anos depois da escolha de seu nome, Vovô a fizera compreender, como se estivesse ao seu lado, ensinando-lhe tudo o que precisava saber. Chorou porque estava feliz e grata.
Quando parou de chorar, sentiu-se aquecida e confortada. Com um dedo incerto, acariciou as pétalas do lírio, imprimindo em suas impressões digitais a memória da textura da flor. Olhou-a bem de perto, captando cada minúsculo detalhe que foi capaz de apreender. Aspirou seu aroma o melhor que pode através do filtro da máscara de gás e fechou os olhos, para que tudo aquilo se gravasse à fogo em sua mente de modo a jamais desaparecer.
Então, com um olhar saudoso, ela saiu. Encontrou a abertura como se jamais tivesse se perdido. Em uma espécie de torpor, vestiu-se novamente e preparou-se para descer. Olhou para o céu: a lua já havia descido muito. O sol nasceria em poucas horas, ela sabia. Tudo agora tingia-se de um azul mais suave, embora ainda escuro. Gostaria muito de sentar-se e assistir ao nascer do sol, mas tinha coisas a fazer nos subterrâneos. Com um último olhar ao redor, ela atravessou a abertura e fechou a porta devagar, mergulhando outra vez no amarelo doentio das lâmpadas dos subterrâneos.
Ela nem mesmo percebeu a meia hora que passou andando por corredores idênticos até chegar à sua Área e depois à sua casa, como se conhecesse o caminho de cor. Sua cabeça vinha pensando, estranhamente, em rimas e métricas – estava fazendo poesia, e isso era por demais importante para se ocupar com os guardas estarem ou não patrulhando seus caminhos, se poderia ou não receber um tiro exatamente no meio de sua testa pequena, como era a marca da guarda bem treinada pelo Governo.
Quando empurrou a porta de casa, não saberia dizer que horas eram. Sua família ainda dormia em seus quartos minúsculos, completamente inconscientes do crime e da imprudência que ela cometera saindo depois do toque de recolher e escapando para a Superfície. Banhou-se depressa para esconder as provas de suas infrações e enfiou-se em sua cama, grande o suficiente apenas para caber seu corpo de seis anos – o Capitão de sua Área lhe cederia outra assim que essa ficasse pequena demais.
Olhou ao seu redor. Depois de tantas horas ao ar livre, as paredes pareciam ainda mais próximas do que de costume, e a luz era ainda mais incômoda. O ar parecia ainda mais parado e quente. Porém, Lílian não estava triste por ter voltado. Compreendera, enfim.
Agora, sabia que aquilo não era a única coisa que havia para ela. Sabia que, mesmo ali, ela tinha cores. Brilhava. Sabia que não existia, apenas: estava viva! Ela era neta de Vovô – e assim como a morte não venceria Vovô, não o faria desaparecer, ela também sobreviveria, teimosa. Havia um futuro para ela, porque os lírios brotam mesmo quando tudo parece morto.