CABEÇA VIRADA

São Beto

Foi mesmo um momento de espanto, ouso dizer, de encantamento. Mulheres bonitas iam e vinham, agitando as cabeças e em alguns casos, um ou outro coração desavisado e carente, doentes da rotina sem perspectiva dos funcionários daquela autarquia federal cuja única finalidade, até prova em contrário, era de oferecer emprego aos apaniguados do poder e ou amantes das eminências e excelências políticas, civis e militares. Mas, esse não é bem o assunto que vamos tratar.

Quando Nogueira apareceu na seção de expediente apresentando a nova funcionária, foi, me atrevo a repetir, um momento de puro encantamento, pelo menos da parte dos homens, que sempre ficavam num frenesi descontrolado toda a vez que surgia uma nova funcionária, sendo bonita então, o ridículo se tornava o mais comum dos lugares comuns. Mas, daquela vez, todas as reverências , mesuras e prosopopéias, ainda ficavam devendo. O diabo da mulher, era mesmo um monumento de beleza. Cabelos negros caídos sobre os ombros de um moreno claro levemente bronzeado, depois, os olhos castanhos cor de mel, boca de devoradora , de homens e tudo o mais que lhe apetecesse devorar. Entre o colo e os joelhos tudo era de tirar o fôlego. Não era muito alta, um metro e setenta e cinco aproximadamente, muito bem equilibrados num salto sete e meio. E eu ainda não disse tudo. Nogueira quebrou o silêncio que já estava ficando constrangedor- Bem pessoal. Essa é a Dona Marlene que vai trabalhar conosco a partir de amanhã. Espero que todos a recebam com todo o carinho e respeito Quanto ao carinho eu não tinha a menor dúvida, ao respeito, já seria pedir muito.

-A senhora vai ficar com aquela mesa perto da janela, ao lado da mesa do Robertinho, o nosso mais jovem funcionário. Nogueira era mesmo um estrategista. Robertinho, apesar de ser um cretino, era muito jovem e não teria a menor chance com aquela deusa de trinta. Ele mesmo não se achava muito competente, mas, iria tentar...Feitas as apresentações, Dona Marlene se despediu com um sorriso e um até amanhã tão doce e cativante, que se ela mandasse, todos cairiam de joelhos aos seus pés. Nem todos, tinha o seu Guima, funcionário antigo, casado e que apesar de bem humorado e brincalhão, não era chegado a conquistas ou aventuras fora do seu casamento. Também ficou impressionado com a beleza da nova colega, mas, não perdeu a compostura. Achou deprimente aquele tipo de atitude, mas, não fez comentário. No resto do expediente, ninguém trabalhou, só se falava na Dona Marlene. Mas, de onde decolou esse avião que veio pousar logo aqui? Bradou Zé Carlos, já prenhe de más intenções. Antes é preciso saber, quem é o dono da aeronave, replicou Everaldo. O próprio Nogueira, que era o chefe da seção, não se furtou a um comentário malicioso, dando mau exemplo. Só pode ser gente do primeiro escalão. No dia seguinte, ninguém chegou atrasado. Estou me referindo aos homens naturalmente. As mulheres formavam um bloco à parte, fazendo críticas e procurando defeitos na mais nova musa da seção, não era fácil, mas, uma mulher sempre encontra defeitos em outra mulher...

Nogueira fez as honras, encaminhando, explicando o serviço e aproveitando o ensejo para dar uma boa conferida nos dotes físicos da maravilhosa Dona Marlene. Qualquer dúvida a senhora pode perguntar ao Guimarães, Seu Guima. Ele é uma ótima pessoa e excelente colega. Malandragem do Nogueira. Seu Guima só foi escolhido, por ser o único homem sério da seção e jamais iria dar em cima da venusta colega.

Dona Marlene já estava lotada não seção de expediente há mais de um mês e ainda parecia ser a grande novidade. Os funcionários das outras seções não perdiam uma chance. Sempre fazendo consultas a respeito de um ou outro processo que poderia estar extraviado ou pedindo urgência num encaminhamento qualquer. Nunca se viu tanto empenho...

Corria uma piada que Robertinho, o cretino, estava ficando vesgo de tanto olhar para as maravilhosas pernas da maravilhosa Dona Marlene, que ocupava a mesa ao lado da sua. Olhar não tira pedaço, mas, o seu plano era bem mais ousado. Bancava o respeitoso para descobrir a praia que ela frequentava para manter aquele bronzeado que enlouquecia os homens e despertava muita inveja nas colegas. Não queria perguntar para não dar bandeira, mas, estava sempre atento. Até que ouvindo a conversa de duas colegas, ficou sabendo que a praia do Arpoador era a responsável por aquele bronzeado perfeito. Mas, a sua verdadeira intenção ou obsessão, era ver Dona Marlene de biquíni. Passou a frequentar a praia do Arpoador todo o fim de semana, até que um dia, esbarrou com ela, melhor dizendo, ela esbarrou com ele. –Oi Robertinho! Você também vem sempre nesta praia? –É..Eu venho sempre. E a senhora, também vem? - Eu moro aqui perto , venho sempre que posso. E você? Robertinho ficou sem fala, sem assunto, perdeu totalmente a bossa. Era muito deslumbramento numa dose só. Dona Marlene de biquíni, era um atentado ao pudor... Vai ser boa assim lá em casa, pensou. Só podia mesmo pensar. Faltou coragem para qualquer gracinha que pudesse justificar a sua fama, má fama, de cretino aspirante a cafajeste. Até segunda Robertinho! Tá na minha hora...- Até segunda Dona Marlene... Os homens da repartição já haviam perdido as esperanças. Conquistar aquela mulher, só mesmo com reza braba ou muita grana, qualidade indispensável, mas, escassa naquela seara. Nogueira uma vez tentou se insinuar, recebeu como resposta, um olhar tão frio, que Robertinho, espalhou que em consequência, o chefe quase morreu de pneumonia. A nova funcionária, a despeito de todas as cantadas, algumas sutis, outras , sem comentários, se comportava sempre muito gentil e educada, mas, não era de dar ousadia pra ninguém. Digo, neste ninguém, não se incluía O Seu Guima, logo ele, o menos cotado, foi o único a despertar a simpatia, quase chamego, da “gostosona” mais disputada da repartição. Só o próprio não mostrava entusiasmo pela situação, nem mesmo quando ela se debruçava na sua mesa, algumas vezes fingindo pedir uma explicação sobre o encaminhamento de um processo supostamente complicado, mostrando na generosidade de um decote, uma linda e emocionante paisagem. Seu Guima resistia, fingia-se de inocente, mudava de assunto...Mas, à bem da verdade, homem é homem e ninguém é de ferro. A gostosona só tinha olhos para o nosso amigo, de honestidade inconteste e incorruptível caráter.

-Guima, meu querido. (já estava tomando intimidade) me ajuda aqui, eu acho que cometi um erro neste encaminhamento. Não havia erro nenhum, ela queria era ficar pertinho, puxar conversa e provocar. E como provocava! Aqueles olhos de hipnotizadora dentro dos seus olhos, aquela boca de volúpia...E o perfume? Era de enlouquecer! Seu Guima resistia como um espartano.

Casado há quase trinta anos com a primeira namorada. Zenaide sempre fora um exemplo de esposa. A casa impecavelmente arrumada, tudo a tempo e à hora, boa cozinheira e todas as prendas do lar, além de outras habilidades que seria até enfadonho enumerar. Seu Guima, se não era feliz, era pelo menos acomodado em sua vidinha morna, até aí, sem nenhum sobressalto, em compensação, sem nenhum atrativo. Era da casa para o trabalho e do trabalho pra casa. Missa e futebol aos domingos e uma vez por ano, apenas uma vez, tomava um ou dois chopinhos com os colegas nos festejos de fim de ano. Jamais pensou em questionar se era feliz ou não.

Dona Marlene chegou foi pra desarrumar tudo e pela primeira vez Seu Guima começou a se dar conta da vidinha besta que arrastava por quase trinta anos. Zenaide ainda era uma mulher razoavelmente bonita, quando nova era bonitinha, tipo comum, lia fotonovelas e colecionava retratos de artistas. Conheceram-se e começaram a namorar num baile de formatura. Em menos de um ano estavam casados. Seu Guima, já era funcionário daquela autarquia, nomeado a pedido de um eminente político da época e que devia certos favores a um tio seu. E daí em diante, nada mais aconteceu, pelo menos nada de interessante, até o dia em que Nogueira adentrou a seção trazendo aquela mulher com olhos hipnóticos e boca de devoradora de homens, almas e corações. Seu Guima não conseguia pensar em outra coisa. E só em pensar, sentia-se culpado, um reles prevaricador, cafajeste como os seus colegas, sempre enrolados com amantes, ex-mulheres e filhos fora dos casamentos. Até Robertinho, o cretino, sempre envolvido com namoradas, amantes e mulheres casadas, parecia ou estava sempre feliz e despreocupado. Os outros, mais velhos, não eram diferentes. Divertiam-se contando histórias escabrosas de conquistas e traições de todo o tipo e qualidade. Ele mesmo, nunca tivera uma historia pra contar, pelo menos uma que envolvesse mulheres, sexo e sacanagem. Sentiu-se diminuído...

-Oi Guima! Me convida pra um café lá na lanchonete... Dona Marlene não dava trégua. E para o desespero da canalha invejosa, resolveu aceitar o flerte, por cordialidade ou delicadeza, mas, aceitou. E vai daí, que aquela fugidinha para um café foi se tornando costumeira. Voltavam rindo como duas crianças que acabara de cometer uma traquinagem. Nogueira despeitado nada podia fazer. Era o chefe, mas Seu Guima tinha mais prestígio que ele diante da diretoria. Prestígio e conceito por ter conquistado a gostosa mais cobiçada do departamento. Isso dava ponto.

Robertinho, sabia que não tinha e nunca tivera a menor chance com a gostosa, apenas se divertia com a situação. -Seu Guima descambou pra galhofa. É direito dele. Araruta tem seu dia de mingau...

Mas, nada era como insinuava as más línguas. Apesar das insistentes investidas de Dona Marlene, Seu Guima ia se desviando e se fazendo de desentendido para não chegar aos “finalmentes”. Voltava sempre pra casa e sempre no mesmo horário, mas, percebeu que Zenaide andava meio diferente. Será que desconfia de alguma coisa? Será que algum filho da puta já andou inventando coisas? Tinha a consciência tranquila. Claro que pensava o dia inteiro na Dona Marlene, claro que a desejava, era homem e aquela mulher não era dessas mulheres que um homem esquece. Mesmo cansado daquele prosaísmo conjugal, mesmo fantasiando noites de prazer e luxúria, não pensava em trair Zenaide, esposa dedicada e mãe extremosa. Mas, a rotina... O diabo da rotina começou a incomodar. Chegou a sentir inveja dos colegas, sempre envolvidos em aventuras amorosas, escândalos com processo em vara de família e tudo o mais... A devoradora de homens, rondava a sua mesa de trabalho com aquele olhar hipnotizador, insinuando em cada gesto, uma explosão de sensualidade. Rondava o seu sono e seus pensamentos...

Também tinha culpa, pensou. Acomodado em sua vidinha morna de confortável cotidiano, nunca imaginou algo diferente. Reconquistar a esposa, cortejá-la, brincar de namorar... Poderia ser uma boa ideia, quem sabe, reativar a chama, Zenaide quando se arrumava para uma festa, penteada e maquiada no salão de beleza, era sem dúvida, uma mulher bastante desejável. Lembrou de como ela era fogosa quando namoravam, tanto que o casamento foi antecipado, mas, este é outro assunto. Fez o convite na primeira sexta-feira. Um teatro ou cinema, jantar num bom restaurante, esticar numa boate...O resto ficaria por conta do improviso. Era para ser um programa a dois, mas, Dona Marlene continuava rondando seus pensamentos. A noite estava especialmente agradável, Seu Guima se esmerava em carinhos e gentilezas, mas, Zenaide estava distante. Só conseguia pensar em Edmilsom, o vendedor de enciclopédia.