Assim ela se foi
Com sua voz tradicionalmente rouca e muito baixa, ela balbuciou algo. Acenda uma vela está ficando escuro, pegue ali na gaveta de cima daquele móvel de canto, deixei lá a última vez que a usei, deve estar lá sim.
A muito estava enferma, não mais levantava do seu leito, dependia de ajuda de quem estivesse por perto, para realizar as mínimas tarefas necessárias.
A vida na casa mudara muito com sua enfermidade, ela sempre só que coordenava os afazeres básicos para um bom andamento então.
A casa não era propriamente uma casa, era um palacete, tinham muitos quartos que se dispunha a usar todos da família, filhos, netos e agregados, enfim... Havia vários banheiros, copa, várias salas e saletas e uma grande sala de jantar. Fora havia um enorme e fabuloso jardim, postavam-se ali arvores frondosas, que muitas delas rodeavam uma grande estufa toda feita de madeira e vidro que era e foi sempre seu orgulho, lugar que lhe acalmava o espírito. Os diversos caminhos do jardim eram formados por pequenas alamedas ladeadas por arbustos todos eles modelados como que fossem muretas, estes caminhos levavam ao lugar principal e mais preferido de todos, o grande salão de festas.
Ela ali deitada não tendo muito que fazer, valia-se destas lembranças de tantos anos passados, brilhava em sua memória fatos que lhe faziam bem a alma, ela sempre fora muito emotiva. Lembrou-se com saudades da última grande festa dada ali naquele salão ricamente mobiliado.
Ela dizia: assim era antigamente, tudo eram iluminados com velas, os lustres, os castiçais sobre as mesas e os candelabros, era por demais ricas a iluminação do nosso salão de festa.
Lembro-me das pessoas chegando com seus trajes alinhados e garbosos, as mulheres todas com vestidos rodados e usando seus chapéus de pluma realçando suas belezas, os homens em seus fraques escuros, cartolas e calçando sapatos espelhados.
A noite começava em encantos, perfumes exalavam no ar, a leve brisa vinda dos jardins trazia com ela o suave aroma das flores, jasmim o meu preferido, contaminando ainda mais a magia de uma noite de festa. No movimento da agitação, escutavam-se o tilintar dos copos e taças de cristal onde se abrigavam finos vinhos ou champanhe servidos então. As louças, todas elas intactas de pesada porcelana, tinham em suas bordas finos desenhos de flores, estes talhados artesanalmente e delineados por fios de ouro, os talheres de prata exibiam-se todos reluzentes deitados sobre a fina toalha de linho branca mono grafada.
Ah, a música sim, ela era suave oriunda de um grupo de músicos discretos em um pequeno palco próprio, eles também muito bem trajados e seus instrumentos ao sabor das velas refletiam-se em raios dourados. Soltavam notas agradáveis que ecoavam pelo salão, até então, já bem freqüentado por muitos convidados já presentes.
A festa estendeu-se noite à dentro até a chegada do alvorecer. Foi assim lembrando-se com muitas saudades de tantos anos já idos.
A vida me foi farta, nunca me faltou nada, sempre fui provida de tudo e sempre muito amada também. Existi na minha vida uma única mágoa, uma revolta que nunca consegui de forma alguma suportar, minha viuvez. Esta sim me amargurou, sentia-me protegida de todas as formas possíveis, mas o destino foi cruel a quem tanto amava. Ele me cobria de mimos, até os mínimos desnecessários e me deu também três filhos que completavam a família.
Formávamos deveras uma família muito feliz e dávamos muito bem, não havia discórdias, havia sim muita união e uma energia muito forte que nos envolvia como que numa redoma.
Ele trabalhava muito, era preciso, nosso patrimônio era considerável e não obstante disso, havia as despesas rotineiras, fora as grandes e concorridas festas que se realizavam por conta do meio em que vivíamos, eram estrondosas.
Tanta felicidade, tanto conforto e uma boa dose de amor, dias futuros chegariam trazendo muito sofrimento e amargura, trazendo a discórdia que nunca houvera. Foi horrível quando ele faleceu, foi de súbito, ninguém esperava, uma enfermidade fatal o consumiu de nós assim como num passe de mágica. Eu fiquei arrasada, meus filhos, agregados e netos, que todos eles se faziam juntos, sempre renovar votos de amor e carinho, também caíram de surpresa pelo falecimento. Ele era jovem ainda, como pode acontecer isso justo com ele, ele que junto de mim dávamos tudo e tanto a todos, festejávamos a vida através do amor e caridade, uma pena, mas infelizmente o destino quis assim.
Depois de seu falecimento coisas horrendas passaram a se suceder, resquícios de maldade e inveja, começaram a consumir um a um da família. Todos aqueles tão bondosos em palavras de amor, começaram a se engalfinhar de forma vil, perdendo a razão. Triste, fiquei muito triste e desolada com tudo isso, deixei de lado muitas das coisas que pensara até então valerem alguns sentimentos, quanta hipocrisia que me envolvia como pude ser tão cega.
Num súbito de delírio lúcido, viu-se de repente completamente sozinha, chamava e ninguém vinha, ela ali postada na cama, chorando pela solidão que há dias lhe assolava, ela percebeu então de fato, estava abandonada ali, estava só, realmente só.
Todos haviam abandonado o palacete já em ruínas, não haviam mais empregados, nem jardins bem cuidados, a estufa que tanto orgulho tinha, estava toda estilhaçada pela ação do tempo. Ela estava só em suas lembranças, conseguiu ainda num ato de desespero e muita tristeza, lembrar-se da sua ultima valsa naquele salão em que todos juravam provas de amor e carinho eterno.
Eduardo Gragnani 2009