A DAMA DA NOITE
Conto fantasia
Eu já não era mais aquele. Os meus amigos e parceiros de música e de copo, das noites boêmias de São Paulo, faziam piadas. Não por maldade, a idéia era mesmo me fazer rir e tentar levantar o meu astral, que à bem da verdade estava meio no pó.
Eu era bastante conhecido entre os freqüentadores dos bares noturnos do centro, compreendem-se, os bairros de Santa Cecília, Barra Funda, Consolação Av. São João, Boca do Lixo, do Luxo e adjacências. Eu não era na verdade um boêmio nos moldes romântico dos sambas canção. Não bebia além da conta, nem andava rodeado de mulheres. Um boêmio eventual poderia me intitular.
Isso, até acontecer comigo o que sempre e fatalmente acontece quando se tem o coração vadio, porém descuidado, em assuntos de paixão e amor, “este fogo que arde sem se ver”.Uma troca de olhares, insinuando um “não sei quê” de malícia, pelo menos da minha parte, confesso. Ela me olhava, me fez parecer, com uma doce simpatia, não sei se por mim ou pela música que eu estava cantando.
Era uma canção do Lupicínio Rodrigues. Pra conferir emendei uma canção de minha autoria, que mais parecia uma cantada, meio sutil, meio descarada. Deu certo. Ela levantou-se, para sentar-se a uma mesa mais perto, onde estavam uns amigos meus. Gostei. Era uma boa chance para uma aproximação e naturalmente entabular uma conversa.
Eu estava só dando uma canja. Os músicos da casa eram todos conhecidos meus. Entreguei o violão e fui me chegando todo sorridente. Puxei uma cadeira para ficar mais perto dela.
- Oi! Está bebendo o quê? Perguntei só pra engrenar uma conversa.
Era Campari com gelo e limão. Não respondeu. Apenas sorriu e me estendeu o copo.
- Prova...
Provei, quase beijando a borda do copo que ainda guardava uma manchinha de batom.
- Muito bom. Vou pedir um também. Pedi mais dois.
- O meu com muito gelo e limão, falou sem desviar os olhos de mim.
- Quem é essa pessoa que tanto te encanta e te atrai? Essa da sua música?
- É um antigo e grande amor que estou conhecendo agora! Cacete! Eu estava inspirado...
Chamava-se Verônica. Fique sabendo naquela hora, porque uma amiga dela, muito inconveniente falou alto seu nome. Porém muito conveniente para mim, que fingi que já sabia e já estava cheio de intimidade.
Tudo parecia mágico. Cada olhar, cada palavra, um simples e trivial comentário a respeito de uma música, um verso, qualquer banalidade era puro encantamento. Naquela noite ficamos só no flerte. Não quis forçar nenhuma situação. Seria vulgar. Saímos juntos e fomos andando até o prédio onde ela morava. Era perto. Quando nos despedimos, ela me beijou quase com timidez
-Você vai voltar amanhã?
Acenei com a cabeça que sim.
- Então até amanhã.
Voltei andando devagar para pegar o meu carro. Saboreando ainda aquele beijo tímido e imaginado como seria da próxima vez. Verônica era bonita, não era linda, mas, de uma beleza diferente, indecifrável, quase exótica, não como as artistas de cinema ou modelos fotográficos. Embora usasse maquiagem, não se parecia com as outras mulheres que freqüentavam a boemia das noites paulistanas.
Voltei pra casa, já contando as horas e minutos que me separavam do próximo encontro e imaginando se ela também pensava em mim. E se Verônica não aparecer? Eu já sofria por antecipação e por antecipação também sonhava, enquanto rabiscava uns versos. Estava ansioso demais para escrever alguma coisa que prestasse. Tudo me parecia muito piegas e um tanto ridículo. Era um sinal, eu sempre fico meio ridículo quando estou apaixonado.
Na noite seguinte parei na porta do bar, ainda do lado de fora, na dúvida se deveria entrar e esperá-la sem demonstrar muita ansiedade, ou seria melhor escancarar de vez, se ela já tivesse chegado? Na falta de uma decisão, fui entrando, falando com um, com outro e fazendo um esforço medonho para demonstrar naturalidade.
Verônica chegara antes de mim. Estava de pé encostada ao balcão, olhando para a porta de entrada. Quando me viu, ficou me fitando, não sorriu, largou o copo de Campari , veio em minha direção e sem dizer palavra, me beijou na boca com volúpia e agora, naturalmente, sem nenhuma timidez. Ficamos por ali mesmo, ouvindo a música, que naquela noite parecia especial. Os amigos e conhecidos nos olhavam com simpatia e já nos considerando um casal de amantes, assim como requer as noites boêmias da desvairada Paulicéia. Rondávamos os bares, onde os nossos amigos e conhecidos estavam se apresentando que era uma boa maneira de prestigiá-los.
Não era raro que me pedissem uma canja. Eu nunca me negava e Verônica aproveitava para pedir que eu cantasse a música que dera origem ao nosso primeiro encontro. Eu cantava e ela agradecia com beijos e carinhos que eu considerava a melhor paga da noite. Da minha vida, Verônica só sabia que eu fazia música, cantava nos bares e era apaixonado por ela.
Dela eu nada sabia. Nunca perguntei, talvez por medo ou por sentir um fascínio pelo mistério que envolvia o nosso relacionamento. A gente só se amava, louca e desesperadamente e isso bastava ou parecia bastar. Um romance folhetinesco, acompanhado em tempo real pelos amigos, conhecidos, garçons, notívagos e afins. Ninguém poderia imaginar um final, feliz ou dramático.
Uma casinha branca no subúrbio, cortinas bordadas, avencas e gerânios na janela. Quem sabe, crianças brincando no quintal? Também poderia ser um drama passional com sangue, lágrimas e manchetes escandalosas: CIÚME GERA TRAGÉDIA NA BOCA DO LIXO. Não havia ciúme. Éramos tão um do outro, que não teria o menor cabimento.
O que acontecia, às vezes, era um desencontro por falta de comunicação.
Ainda não existia o celular e quando acontecia, por qualquer motivo alheio à nossa vontade, eu ficava numa ansiedade louca, percorrendo os bares costumeiros, onde sempre nos encontrávamos e sem me importar com o vexame, perguntava por ela até para os garçons.
-Verônica passou por aqui?
- Passou. Perguntou por você e saiu... Alguém falou que você estava na
Consolação, daí ela entrou um táxi, deve ter ido pra lá.
E lá ia eu voando pra Consolação. Ela já havia passado por lá e saído para um bar no bairro de Santa Cecília. Quando enfim nos encontrávamos era uma loucura. Nunca fizemos planos, nunca pensamos no futuro, vivíamos cada momento louca e intensamente. Uma noite, e não sei por que cargas d’água, falei ou fiz a maior besteira da minha vida.
-Você já percebeu que a gente só se conhece durante a noite?
Verônica riu muito, riu alto e ficou me olhando, espantada com a observação.
-É verdade... Deve ser porque escolhemos a noite para o amor e o dia para o trabalho... Ou será que nós somos encantados? Vampiros por exemplo. Os vampiros dormem n’um caixão durante o dia e à noite saem para sugar o sangue das suas vítimas. Essa noite beberei teu sangue! Riu e deu uma mordidinha no meu pescoço. Acabei rindo também. Ficamos calados por um tempo até que ela mesma quebrou o silêncio.
- Você não quer passar um domingo comigo? Um dia inteiro de sol com direito a passeio no parque... Eu vou querer refrigerante, cachorro quente e pipoca. Ah! Algodão doce.
- Você gosta?
- Gosto.
Eu estava entrando naquele entusiasmo, que pra mim era novidade.
Um dia inteiro de sol no parque, olhar os bichos, tomar sorvete, namorar..
Ocorreu-me que nós só tivemos um dia de alguma coisa que parecia um namoro. Foi quando nos conhecemos.
Marcamos encontro numa confeitaria, ali nos arredores da Av. São João. Ainda era cedo e eu queria esticar ao máximo aquele dia. Havia uma feira de artesanato no largo do Arouche e passeamos por lá um tempo, apreciando as pinturas de vários artistas desconhecidos que expunham suas obras à troco de qualquer ninharia. Não sabia que ela gostava de artes, plásticas, aliás tudo que eu sabia de Verônica era que ela bebia Campari e tinha um gosto bastante refinado pra música.
Naquele domingo tudo estava diferente. Verônica vestia calça jeans, tênis e uma camiseta bordada. Parecia outra mulher que eu estava conhecendo, sem o reflexo do néon sobre o vestido e a maquiagem dos olhos com sombra esverdeada. Eu era louco por ela, mas, estava me apaixonando por outra. Outra mulher, Mais simples e de uma beleza mais singela. Usava um batom bastante discreto, as faces ligeiramente rosada. Não sei se era maquiagem ou efeito do sol.
Eu também já estava desacostumado com a luz do sol, assim diretamente no meu rosto. Estava gostando. Depois fomos de carro até o parque do Ibirapuera. Estacionei numa sombra e nos sentamos na grama para apreciar as pessoas. Pessoas comuns. Casais com crianças, namorados se beijando em plena luz do dia, achei engraçado. Esqueci que na minha juventude eu também não escolhia hora ou lugar.
Comemos cachorro quente com refrigerante, sentados na grama. Verônica parecia feliz, eu estava, com toda certeza. Tive vontade de rolar na grama com ela, assim como os jovens casais, que se agarravam e se beijavam sem a menor preocupação com o decoro ou censura.
Não fizemos. Ficamos de mãos dadas apreciando e achando lindo, muito lindo. Os hormônios pululavam descaradamente e como eles não tinham vergonha mesmo... A noite foi chegando e com ela uma melancolia que na hora eu não consegui entender. Hoje entendo.
Na volta eu dirigia calado, mas, com vontade de dizer alguma coisa que eu não atinava bem o que era. Enquanto ela acariciava um colar de sementes que eu havia comprado na feira de artesanato. Parecia que estava rezando um terço. Naquela hora me assaltou uma angústia tão grande que parecia queimar por dentro e mais uma vontade inexplicável de cometer um desatino sem saber por quê.
Deixei Verônica na porta do prédio onde morava. Nunca entrei neste prédio, pensei com tristeza. Ela me beijou com a mesma timidez do nosso primeiro beijo e falou baixinho, quase uma confidência:
- Você hoje me fez muito feliz. Obrigada. Foi andando e entrou no prédio sem olhar pra trás. Parecia triste.
Fiquei uma semana sem aparecer. Quando voltei, procurei por ela desesperadamente, rondei os bares, perguntei aos amigos, fui procurar no prédio onde ela morava. Não estava mais lá. Tomei um porre memorável e me afastei por uns dias.
Quando voltei, já não era mais aquele. Sem a minha dama da noite e sem a bela da tarde.
São Beto
Gostaria de um final mais feliz. Se você tiver alguma ideia, mande pra mim.