O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – 20

O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – 20

Rangel Alves da Costa*

A estrela-de-fogo, de olhos bem abertos e ouvidos espalhados pelo ar, ouviu tudo o que a menina disse e, num misto de espanto e curiosidade, quase desiste da profissão de detetive naquele mesmo instante.

Suada, quase tremendo de frio mesmo no calorzinho da noite, não conseguiu fazer qualquer tipo de anotação, vez que a mão trêmula se negava a rabiscar os pormenores do diálogo entre Lucinha e o médico.

"Aonde eu fui me meter, meu Deus! Fui contratada para buscar e encontrar pistas sobre um caso de assassinato e agora me vejo diante de fantasmas de rosas que voltam ao mundo dos vivos para reclamar e exigir castigo para quem as matou. Aonde fui me meter, meu Deus! Se não fosse a prímula sairia desse lugar de malucos agora mesmo. Mas tem a prímula no meio dessa história toda. Oh! prímula, meu amor, me diga que não tem nada a ver com isso não, que o mais rápido possível sairemos por aí como dois amantes pelos jardins da vida. Te darei meu androceu e meu perfume, e de ti quero apenas receber a brancura do teu olhar que são como pétalas orvalhadas no amanhecer de um coração apaixonado. Um dia talvez, como coroação do amor que sentimos, certamente terei teu gineceu, tão doce como a própria flor, tão suave e perfumado como o pólen das delícias. Oh! prímula meu amor, sopre no vento a certeza da tua inocência e dormirei feliz e sonharei contigo, antecipando o paraíso que nos espera. Oh! prímula meu amor, se tu soubesses quanto dói viver entre a certeza e a dúvida, a verdade e a aparência, a culpa e a inocência, o medo e a esperança, não me deixarias assim solitário nessa noite enluarada, quando os fantasmas de tantos problemas parece nos rondar incansavelmente. Se tu viestes ao meu lado, se de mansinho formássemos um jardim só nosso, nenhum fantasma suportaria a visão de tanta alegria e felicidade. Venha, meu amor, ao menos em sonhos venha meu amor, e juro por tudo de mais sagrado que amanhã cedinho partiremos mesmo que como seres fugidios, se alguma culpa tiver, para bem longe, para onde as flores pecadoras pagam somente a pena de exalar menos aroma. Venha prímula, venha meu amor...".

Ainda falava consigo mesma, mas que qualquer um que estivesse ao seu lado ouviria, quando sentiu um toque frio, quase gelado, numa de suas pétalas. "Ouça". Só teve tempo de ouvir isso antes de desmaiar ao sentir que as rosas, aquelas mesmas rosas mortas, estavam ali logo atrás, querendo dizer alguma coisa.

O desmaio da estrela-de-fogo foi tão violento que o sol já alto do outro dia ainda iluminava a planta totalmente fora de si, parecendo morta. Ao redor, os comentários mais diversificados possíveis sobre aquela situação. O lírio falava que tinha algo a ver com bebedeira naquela situação; a bromélia jurava de pé junto que a planta havia tomado uma surra, só não sabia dizer de quem; enquanto o sabiá dizia que tava na cara que aquilo não era nada mais nada menos do que preguiça.

Verdade é que o jardineiro jogava incessantemente água sobre a planta, que somente começou a despertar quando ouviu alguém falar no nome da prímula. Voltou a si assustada, num espanto de dá dó. Quando percebeu as feições do jardineiro e das outras plantas, flores, bichos e todo o mais que por ali se aglomerava, baixou a cabeça envergonhada e assim ficou até todos se dispersarem da dali.

Que vergonha, meu Deus! Disse a si mesma estrela-de-fogo. Depois de lembrar do que realmente havia ocorrido, jurou que iria embora naquele mesmo dia dali, acompanhado ou não pela prímula. Seu nome poderei ser enlameado, perder as credenciais de investigação, nunca mais ser nada, cair no descrédito total, mas não ficaria mais ali de jeito nenhum. Lidar com fantasmas era demais para quem já temia a maioria dos vivos.

continua...

Poeta e cronista

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