O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – 16
O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – 16
Rangel Alves da Costa*
Com efeito, a madrugada apresentou um tempo firme, de céu estrelado e vento moderado, dentro da normalidade desse percurso entre a noite e o dia. Contudo, já perto das quatro horas da manhã a natureza começou a ficar entristecida, nuvens foram tomando conta do céu, o vento aumentou em muito sua velocidade e o que já deveria ter a claridade do dia que se iniciava ficou mais escurecido e nevoento.
Quem conhecia as transformações repentinas da natureza, logo diria que não demoraria a cair trovoada, tempestade ou coisa parecida. Mas estaria completamente enganado, pois o que começou a surgir de mansinho foi uma chuvinha fina, fraquinha, porém constante e tomando praticamente a visão da natureza ao redor. Não se enxergava praticamente cinco metros à frente.
Como a estrela-de-fogo tinha um modo diferente de dormir, pois repousava às dez horas da noite e dormia até meia-noite; despertava e assim ficava até uma hora; em seguida adormecia novamente até duas horas; acordava às duas e ficava fazendo nada até duas e meia; depois dormia até três, quando acordava e daí em diante apenas cochilava e acordava, cochilava e acordava, de modo que a partir das três da manhã já pudesse acompanhar, mesmo que ainda sonolentamente, tudo o que ocorria ao redor.
Desse modo, a partir das quatro horas da manhã, mais sonolento do que o costume por causa do clima chuvoso, ainda assim não pôde deixar de começar a perceber movimentações e conversas estranhas ali no jardim. Não era momento e oportunidade para nada daquilo estar ocorrendo, ficou imaginando.
De início, ouvia bem baixinho, como se os rumores viessem de bem longe, mas depois de aguçar o ouvido e procurar enxergar por entre o tempo fechado, passou a avistar certos vultos e ouvir certas palavras que lhe pareceram imediatamente instigantes.
Com efeito, Seu Heleno, o jardineiro, parecia estar ali àquela hora do dia e caminhava de mansinho de um lado pra outro, conversando particularmente algumas coisas com determinadas flores. E não era para aquilo estar ocorrendo porque ele não dormia ali. Aliás, pelo que já havia investigado, ele morava bem distante, num subúrbio, com esposa e filho.
Mas ele estava e parecia não restar dúvidas. "Eu disse pra você ficar calada, fazer de conta que não fez nada nem ouviu nada, mas você parece que tem o bicho falador na língua e de repente pode botar tudo a perder. Se foi você quem matou as rosas e por isso mesmo quer se ver livre da acusação, então tem que fazer com que ela suspeite mais de outras flores. Ela é esperta demais, você sabe bem disso, e é até por isso que foi contratada para descobrir a culpada ou os culpados. Mas isto não quer dizer que quem ela descubra seja realmente culpada. A culpa vai recair certamente onde os comentários crescerem, as suspeitas aumentarem, o disse-me-disse passar a indicar que tem alguma culpa. Por isso mesmo é que se você quer ficar livre dessa acusação, até porque você é a verdadeira culpada, então tem que começar imediatamente a acusar flores ou plantas inocentes. Por que não começa a comentar que foi o sabiá apaixonado? Por que não começa a jogar a culpa na margarida, no crisântemo ou na hortênsia?".
Era a voz do jardineiro, não tinha dúvidas. Mas quem falou em seguida não conseguiu identificar. E naquele momento nada mais importante do que poder constatar quem era a interlocutora do homem, pois era aquela a verdadeira assassina, segundo havia sido declarado ali. Mas a flor misteriosa respondeu:
"Mas não fui eu. Eu não tenho nada com isso. Não tenho que temer nem acusar ninguém porque não fui eu. Eu até sei por que você quer me culpar, acusando por um ato que não pratiquei. Eu não gostava delas sim, mas ainda não teria coragem de tirar a vida daquelas bestinhas egoístas. A todo mundo é dado o direito de continuar vivendo, sabia disso? E você sabe muito quem matou e a culpada está entre aquelas três que faz parte de sua máfia. E quem faz parte de sua máfia, senão o jasmim, o copo-de-leite e a violeta? Vá procurar que entre essas três há a marca de sangue no destino. E cuidado para não ter sido você o culpado".
Máfia? De que máfia falava aquela misteriosa flor? Só faltava essa. Que coisa mais intrigante, ficou conversando sozinha a estrela-de-fogo.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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