O Bonde

Folhas eram carregadas pelo vento que batia nesta tarde, dançando em ritmo festeiro. Daniel se encontrava sentado em um banco de granito, na praça central da esquisita cidade de Glaston. Não deu a menor importância quando a força da natureza lançou seus cabelos negros ao ar - bagunçando-os de forma radical -, pois sua atenção estava voltada para ao que muitos chamariam de uma situação inusitada. Ele observava atentamente o que alguns homenzinhos de cor laranja, que se auto-intitulavam etras, pretendiam ao levar um enorme pano de seda vermelho morro acima. De todas as criaturas deste local, com certeza os etras eram os mais excêntricos. Eram seres totalmente imprevisíveis e criativos.

Todas as suas ações, principalmente as inconvenientes, eram descritas pelos próprios etras como arte. Quase todas as árvores da cidade eram pintadas, das mais variadas cores e estilos. Latinhas eram amarradas nos postes com a intenção de fazer música, o que era um grande incômodo nos dias de ventania. Costumavam a fazer festas sem sentido de noite pela cidade. Ninguém sabia o que eles comiam ou bebiam, muito menos se sequer dormiam. Às vezes se trancafiavam em suas casas por dias e só saíam delas com o intuito de fazer arte.

E lá estavam eles, no topo da colina, se preparando para fazer mais um ato artístico. Quatro etras seguraram as extremidades do tecido e o jogaram ao ar. Foi uma visão maravilhosa. O gigantesco pano vermelho se mexia rapidamente, causando um efeito ondulado, Daniel parecia estar apreciando um pedaço de um mar vermelho. Outros etras dançavam embaixo do oceano artístico, enquanto alguns faziam pinturas ao longe. Mas o inesperado aconteceu. A força do vento aumentou e os pequeninos que seguravam o pano sentiram a vontade dela de levar sua arte embora. Não queriam soltá-lo e acabaram sendo carregados junto dela pela ventania. Todos que observavam aquela situação caíram na gargalhada, inclusive os etras que sobraram no morro.

Logo todos voltaram aos seus afazeres, e Daniel voltou-se para seu almoço. Um pão de forma triangular, recheado com um tipo de presunto. Não gostava muito, mas era só o que tinha. Deu uma breve mordida e olhou ao redor. Todas as criaturas faziam algo estranho – comparando com os seres humanos -, porém, eram todos felizes. Notou os trilhos que ficavam no meio da rua. Ela vinha do vale que rodeava Glaston, cortava toda a cidade, e depois voltava por onde tinha entrado, se juntando a uma única linha de trilhos. Nunca tinha visto nenhum trem ou algo parecido passar por lá. A curiosidade do garoto era enorme, ele queria conhecer esse mundo, queria viajar.

Estava perdido em pensamentos quando o chamaram:

- DANIEL!

Era Luke, um nomadus, uma criatura que tinha o formato de pêra, possuía quatro pernas e apenas um braço, sua cabeça era de forma cilíndrica. Aproximou-se e disse:

- Já está almoçando e nem me chamou! – acusou de modo magoado.

- Desculpe, me esqueci... – disse Daniel com sinceridade.

- Tudo bem, vejo que você ainda não terminou! – falou empolgado. – Vou me juntar a você!

Sentou-se, empurrando Daniel para o fim do banco, e abriu a sacola que jazia em seu braço. De lá tirou um enorme sanduíche, e sem delongas, começou a devorá-lo. Luke era o melhor amigo do garoto, foi ele que arranjou um lugar para ficar quando chegou neste mundo. Nunca iria se esquecer disso, o medo que sentiu na primeira noite que passou na rua, com tantos seres estranhos – sem mencionar suas esquisitices -, e a esperança que ganhara ao ser ajudado por alguém desconhecido. Em seu mundo, isso nunca iria acontecer. Deu um longo sorriso e disse:

- Vai com calma, não vá se engasgar de novo! – disse brincando.

- Engraçadinho. Você sabe que não posso comer devagar, é contra meu instinto! – disse contrariado.

- É brincadeira. – disse rindo. – Você sabe disso.

- Sei, mas não gosto.

Daniel deu uma pequena risada, sempre implicava com Luke, mas nunca haviam brigado, e talvez isso nunca fosse acontecer.

- Logo temos que voltar ao trabalho... – disse Daniel tristemente.

- É. – falou Luke com a boca cheia.

Eles trabalhavam e moravam em uma pensão de comida caseira. Seu chefe, Gork, era um suíno gigante, isso mesmo, um porco. Apesar de ser exigente e arrogante, ele tinha uma alma boa. Dava abrigo e alimento para os menos afortunados, claro, em troca de trabalho.

Já estava neste novo universo há quatro meses, e ninguém saia da cidade. Só se tinha conhecimento de uma outra população, a leste dali. Era de lá que viam os sinais da televisão e muito raramente aparecia alguém de lá por Glaston. O nome dela era Gigantopólis. Tinha vontade de ir lá, de conhecer a cidade, mas o medo de se perder no meio do caminho era maior.

Já estava na hora de voltar ao trabalho. Daniel se levantou e olhou para Luke com intenção de falar algo, mas foi interrompido por um longo apito. Todos pararam de imediato e a confusão dominou a praça. Os trilhos do meio da rua tremiam, como se algo estivesse se dirigindo ao local. No fim da estrada alguns etras vieram correndo, em conjunto, dando cambalhotas e piruetas. Ouviam-se gritos ao longe, não de terror, mas sim de surpresa. Todas as criaturas estavam tensas, devia ser um acontecimento inédito para eles. A cada segundo que passava os apitos iam aumentando, os trilhos balançavam cada vez mais. Todos olhavam para o fim da rua, na espera.

Daniel se aproximou do meio-fio e viu aquela estranha máquina virar a esquina. Era um tipo de trem, só que bem menor. Quando ela se aproximou pôde ver com mais clareza: era um bonde. Viu os detalhes feitos de ouro e prata que cobria a maquinaria. Ela começou a diminuir sua velocidade, deu um último apito – o mais longo deles -, e parou na frente do garoto.

Todos ficaram estáticos, olhando para aquela coisa. Nunca deveriam ter visto algo do tipo. Daniel foi o único que ficou próximo ao bonde, sem muito medo. Agora pôde ver seu interior, era um luxo! Seu comprimento não devia passar de vinte metros, já sua largura era biforme. Ou seja, nas pontas deveria ter apenas cinco metros, já no centro, onde havia um gigantesco salão, devia medir um pouco mais que dez metros. Não havia ninguém lá dentro.

Foi quando uma sombra saiu da cabine frontal. A única peça de roupa que vestia era um chapéu, muito parecido com o que alguns motoristas de ônibus usavam. Aproximou-se da entrada, pareceu procurar alguém na multidão e abriu um largo sorriso quando mirou em Daniel. Pegou um alto-falante, que estava encostado na parede da parte de dentro, e anunciou:

- DANIEL! SER HUMANO, DANIEL! TRÊS MINUTOS PARA A PARTIDA! A DECISÃO É SUA!

O garoto sentiu todos os olhares pousarem nele. Olhou para Luke – que estava tão surpreso quanto ele – e disse:

- O que é isso? – perguntou assustado.

- N-não sei...

Virou-se e viu que a sombra havia sumido, apenas o alto-falante estava lá, flutuando ao ar. Sentiu um frio na barriga, aquele que tinha quando via aquela garota linda, ou, antes de apresentar um trabalho de geografia na frente da turma inteira. Já não ficava nervoso assim há muito tempo. Outro anúncio.

- DOIS MINUTOS PARA A PARTIDA!

Dúvidas. Era tudo o que passava pela mente de Daniel. Se eu entrasse, para onde eu iria? E se eu for para muito longe e não puder voltar? Como é possível aquela coisa saber meu nome se nunca me viu? Até que se fez a pergunta certa. Será que terei coragem de entrar neste bonde? Logo a resposta veio naturalmente, era o medo que segurava sua pessoa. Percebeu que sua vida era dominada pela insegurança e vergonha. Tinha quinze anos de idade e nunca tinha beijado nenhuma garota, nunca tinha ido a uma festa de verdade. E agora estava ali, vivendo um sonho maravilhoso, na frente de seu grande desejo, o de conhecer o mundo e a si mesmo. E o medo o segurava!

Tomou coragem e falou para seu amigo:

- Luke. Eu vou entrar nessa máquina. – disse Daniel de modo decidido.

- Como assim? – perguntou preocupado.

- Sempre quis viajar, não importa em que mundo esteja. Toda a minha vida o medo me impediu de seguir meus sonhos, e fazendo isso, estarei finalmente sendo eu mesmo.

- Mas... Eu não quero que você se vá! – implorou. – Por favor, fique.

- Não faça isso. Eu preciso muito disso. – falou segurando o choro.

Luke manteve sua cabeça abaixava. Ele era compreensível de natureza, nasceu com a bondade no coração. Olhou para Daniel e percebeu que ele precisava muito daquilo. Deu um tímido sorriso e sussurrou:

- Tudo bem... – falou tristemente. – Vou avisar ao Gork. Ele entenderá, eu acho. Só não abandone agente, digo isto, em pensamentos...

- Não vou, eu prometo. – disse. – Obrigado por tudo.

Daniel se sentia muito bem, finalmente tinha assumido as rédeas de sua vida, tinha tomado sua primeira decisão importante. Antes mesmo de o alto-falante anunciar novamente, ele entrou no bonde. A porta fechou atrás dele e, aos poucos, a máquina começou a andar. Viu a corrida desesperada de Luke do lado de fora. Sentia-se mal, mas tinha que fazer isso. Quando virou a esquina e Luke saiu de vista, ele se voltou à máquina. O interior chegava a ser mais impressionante que o exterior. Havia comida de todo tipo espalhado em um grande balcão, que ficava no final do vagão único. Aproximou-se e provou. Divino! Instrumentos musicais flutuavam ao ar, tocando uma música calma e relaxante. Havia bancos de todos os tamanhos possíveis, todos enfeitados de modo diferente – Daniel imaginou se cada um era para um tipo de criatura. Tudo era belo e maravilhoso.

A porta da cabine frontal se abriu e uma voz o chamou:

- Daniel, venha cá.

Sem hesitar o garoto foi andando até a cabine enquanto observava as últimas ruas da cidade. Todos olhavam boquiabertos para aquela estranha máquina que cortava a estrada. Entrou dentro da cabine, e a sombra que havia lhe chamado estava lá, sentado na frente do que parecia ser o centro de controle do bonde. Apontou-lhe uma cadeira, e ficou observando o garoto. Depois de alguns instantes disse:

- Você sabe por que eu vim para está cidade? – perguntou já esperando uma resposta negativa.

- Não...

- Por sua causa.

- Como assim? – disse em tom preocupado.

- Não tem com o que se preocupar. – falou em tom protetor, deixando Daniel mais relaxado. – Eu vim para cá porque você pediu, não se lembra?

- Ainda não entendi... – falou Daniel de modo envergonhado.

- Você sempre quis viajar, conhecer o mundo, estou correto? – e continuou ao ver o garoto acenar positivamente. – Quando você estava olhando para os trilhos hoje, você desejou profundamente isso, e eu vim.

- Ah. Entendi. – falou Daniel. – Mas como isso é possível?

- Minha função é essa, transportar quem queira e quem precise. Percebo ao longe quando uma pessoa precisa de algo e venho ao resgate. Seja numa pequena viagem de visita, seja numa gigantesca de autodescoberta.

- Mas porque você nunca veio a esta cidade antes?

- Porque ninguém aqui precisa de mim. Todos são felizes do jeito que estão, ou você ainda não percebeu isso? – perguntou.

- Já. Mas ninguém nunca precisou mesmo de ajuda?

- É difícil de acreditar, não é? – comentou de modo descontraído.

- É...

Aquilo era demais para Daniel entender. Aquilo era um tipo de anjo? Olhou para aquela sombra, que não tirava o sorriso do rosto, e percebeu que ele podia ler sua mente.

- Isso mesmo. Agora você entendeu. – falou abrindo ainda mais o sorriso. – Mas não sou um anjo, nem mesmo um demônio. Sou apenas o que sou, e faço o máximo para ajudar os outros. Em seu mundo eu poderia ser considerado um deus, mas aqui eu não sou único.

Observou intensamente o garoto e disse:

- Ainda está muito cedo para você entender isso. Agora se você não se importa, tenho um bonde para dirigir.

Daniel se levantou e saiu da cabine – cuja porta fechou sozinha -, e sentou-se no primeiro banco que viu. Não tinha mais medo, aquela sombra havia conquistado sua confiança. Iria se entregar totalmente a esta aventura, aliás, queria muito conhecer este mundo, onde todos os sentimentos são aguçados e sensíveis. Viu o vasto vale que jazia pela frente e olhou uma última vez para aquela fantástica cidade. Tinha passado muitos momentos felizes naquele local, e não pretendia abandoná-la.

- Um dia eu voltarei!

Fabio Barreiro DOL
Enviado por Fabio Barreiro DOL em 12/10/2010
Reeditado em 14/10/2010
Código do texto: T2551632
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.