O MENINO QUE NASCEU VERDE – VI
O MENINO QUE NASCEU VERDE – VI
Rangel Alves da Costa*
O sertão nunca morre, sempre continua vivo, seja com que seca for, mas os bichos e as plantas morrem, esturricam, viram pó e é isso que vai acontecer com o menino e Cosme não quer atinar, dizia Joana para si mesma, já que sabia que o marido não arredava um pé atrás daquilo que dizia ou decidia.
A seca naquele ano foi terrificante. Desde o fim do ano passado que as esperanças dos sertanejos vinham sendo enterradas dia após dia, mês após mês. Por mais novena que se fizesse, reza que fosse rezada e santo pra ser implorado, no dia de São José não choveu uma gota sequer. Se o céu estava azul e o sol escaldante, assim foi ficando até o momento em que a seca já era reconhecida pelo sertanejo mais crente.
Acabou a água nos barreiros, nos tanques, nas cacimbas, em todo lugar. Olhando-se a paisagem, o que se via era uma vastidão marrom de plantas ressequidas e ali ou acolá uma vaquinha magra pastando sem ter o que comer nem beber. Algumas carcaças de animais já podiam ser encontradas nas estradas e pelos pastos nus. Era uma tristeza só. As mulheres ficavam nas cancelas ou na beira das estradas como uma lata ou um balde esperando que um carro-pipa passasse e desse um pouco de água. Se a comida do sertanejo já era pouca, agora tudo tava mais difícil ainda. De vez em quando davam na cidade um pouco de comida estragada e era só. Só Deus sabe como os pais estavam criando os filhos pequenos. Não se tinha nenhuma previsão de chuvas e já se falava que aquela seria a maior seca da história do sertão.
Pelas estradas não era difícil de se encontrar pequenos grupos de pálidas e raquíticas sertanejas em verdadeiras procissões. À frente, protegidas por guarda-sóis e carregando as imagens de São José, santo que tem o dom de fazer chover no sertão, do Padre Cícero, cuja devoção sertaneja é igual a de um santo, e de Frei Damião, o sagrado e milagreiro capuchinho, seguiam puxando as rezas e ladainhas:
"Meu divino São José, aqui estou aos vossos pés pedindo água com abundância, meu Jesus de Nazaré. Quem quiser chuva na terra se apegue com São José, é um santo milagroso pela nossa santa fé. Meu divino São José está com sua cruz na mão, nem de fome, nem de sede, na mate seus filhos não".
"Glória, glória, aleluia! Louvemos ao Senhor! Na beleza do que vemos, Deus nos fala ao coração. Tudo canta: Deus é grande, Deus é bom e Deus é Pai. É Seu filho Jesus Cristo que nos une pelo amor, louvemos ao Senhor! Deus nos fez comunidade, pra vivermos como irmãos, braços dados, todos juntos, caminhemos sem parar. Jesus Cristo vai conosco, ele é jovem como nós, louvemos ao Senhor! Jesus Cristo é alegria, Jesus Cristo é o Senhor, da vitória sobre a morte, deu a todos o penhor. Venceremos a tristeza, venceremos o temor, louvemos ao Senhor!".
Seguindo esse percurso de esperança e fé, até mesmo de desespero e temor se assim se pode dizer, muitas dessas penitentes não suportavam o calor, a fome e o sol escaldante na "moleira" e desmaiavam pelas estradas. Para refrescá-las e ajudá-las a conseguir forças para seguir adiante, muitas vezes as amigas de iguais tristes sinas tinham de ir bem longe para cavar uma cacimba e trazer água que só bicho bebe. Às vezes os bichos não queriam beber, mas gente tinha de beber.
Na terra nua e desolada, somente as plantas resistentes à seca ainda sobreviviam. Assim, na aridez da paisagem estavam vivamente presentes o xiquexique, o mandacaru, a palma, o facheiro, a cabeça-de-frade, enfim, aqueles cactos que simbolizam o sertão por serem, igual ao sertanejo, também fortes e teimosos. Mesmo atravessando longos períodos sem chuvas, eles conseguem permanecer verdes e vigorosos. Contudo, num ambiente hostil como aquele, já entrando para o segundo ano de estiagem, toda a água retida no corpo dessas plantas vão acabando e elas acabam também perdendo seu brilho, sua cor, suas vidas sertanejas. Os espinhos, como escudos protetivos, também desaparecem.
Por esse período, com cerca de quatro anos, João já estava em idade de falar e entender tudo, de caminhar sozinho pelos quatro cantos da tapera e fora dela, traquinando aqui e acolá, como toda criança gosta de fazer. Contudo, tal desenvolvimento infantil estava longe de se ver no menino. Pelo contrário, sua fragilidade era tal que passava a maior parte do tempo deitado na caminha, sob os cuidados atentos de sua mãe.
Muitas vezes Joana não podia segurar as lágrimas e pequenas gotas iam caindo por cima da criança. No corpo, agora de palidez ressequida, num tom desbotado, iam surgindo pequenas marcas mais esverdeadas nos lugares onde as lágrimas da mãe tocavam. Outra água, senão a da chuva e da lágrima da mãe, não surtia nenhum efeito para que João retomasse sua vitalidade.
continua...
Advogado e poeta
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