O MENINO QUE NASCEU VERDE – V

O MENINO QUE NASCEU VERDE – V

Rangel Alves da Costa*

Mais do que os ditos homens do tempo, ou meteorologistas, os sertanejos sabem que é na estação do inverno o tempo certo para chover bem na região. Desde o final de dezembro que o tempo se anuncia como provedor ou não de boas chuvas. O próprio Cosme sabia que se na madrugada do dia 25 de dezembro for formada uma barra entre as nuvens que ficam no horizonte e o sol que vem nascendo é sinal de bom inverno no ano que vem entrando. Mas até essa estação, que no passado começava certinho em março e ia até junho, está hoje em dia ao deus-dará, sem que ninguém garanta que ao invés das chuvas venha a estiagem.

Até a esperada chuva do dia de São José, comemorado a 19 de março, tida como um sinal de bom inverno, passou a decepcionar a maioria dos sertanejos. Muitas vezes, não chove nem no dia do santo nem nos dias e meses seguintes. Os que são mais otimistas fazem um cálculo que há muito não vem dando resultado certo: no mês de janeiro a chuva cai por cerca de quatorze dias; em fevereiro as chuvas são rápidas e com o tempo apenas nublado; em março chove durante doze dias e cinco em abril; em maio esperam-se uns cinco dias de chuvas; em junho, quando já estão escasseando, se anuncia o começo da estiagem. Mas tudo tá diferente. Verdade é que muitas vezes o verão é a única estação a imperar no sertão, por um, dois anos seguidos. É a seca impiedosa que se abate sobre tudo e todos.

Numa dessas tardes de calor insuportável e sol queimando até a alma, Sinhá Constança bateu à porta do barraco de Joana e Cosme. Este não estava; tinha ido ganhar um dinheirinho ajudando a apagar um incêndio que se alastrava numa fazenda das redondezas. A velha parteira, como era costume seu, fez a saudação caipira, se avistou com o menino triste deitado embaixo da mesa e foi logo dizendo o que pretendia:

- É uma pena que Cosme não esteja aqui pra ouvir o que tenho a dizer. Mas vou dizer assim mesmo e você passe pra ele assim que voltar. Você é mãe e mais do que ninguém sabe do estado dele. Olha só, dá pena ver o bichinho desse jeito, e tudo porque a chuva essa ano tá com teimosia. Mas vai ser pior Joana, vai ser muito pior. Me dói no coração dizer, mas a trovoada que não veio no inverno vai faltar até o fim do ano e do mesmo jeito vai ser no próximo ano. O que se vê lá fora, com os tanques rachando de secos, as plantas tudo ficando marrom e os bichos berrando de sede, ainda vai ser pior daqui pra frente e só Deus sabe até quando. O menino já tá sofrendo com essa situação e tende piorar a cada dia que passa. É como se ele fosse uma pequena árvore que as folhas vão perdendo a cor, murchando, até cair. Depois quem morre é a própria árvore. Deus tenha piedade, mas a verdade é que João pode morrer também. E como eu disse, nem adianta olhar pra barra, ver as cor das nuvens, que tão cedo não chove. Se quiserem salvar a vida dele, vocês tem que arrumar um jeito de sair daqui com urgência e ir pra um lugar onde tenha chuva o ano todo. Então é isso que eu tinha a dizer Joana, ou vocês vão logo embora ou ele vai acabar morrendo nessa seca.

Assim que retornou, Cosme encontrou Joana sentada num tamborete em frente ao barraco. Não perguntou nada, mas logo percebeu que ela tinha andado chorando. Mandou que ela esperasse ali mesmo que ele ia lá dentro pegar a pinga pra tomarem uma dose. A mulher tomou num gole só e pediu pra repetir. Depois de se servir da pinga, Cosme sentou numa pedra perto da mulher, matutou um pouco e depois disse: “Sei que num vem nada bom, mas me diga porque você andou chorando e tá com essa cara triste”. E Joana contou tudo o que Sinhá Constança havia dito, tim-tim por tim-tim, com uma lágrima escorrendo pelo rosto.

Cosme estava sentado e sentado ficou, com a feição inabalada e sem esboçar nenhum gesto diferente. “Ir pra onde e como?”, foi o que indagou inicialmente. Tomou mais uma dose, levantou e com os olhos voltados para o horizonte começou a falar com mais fôlego:

- Num tem jeito que dê jeito não muié. Nascemo aqui e vamo morrer aqui. Nessa seca toda, mesmo querendo vender o tiquim que nóis tem, mesmo assim ninguém tem um tostão pra dar em troca. Todo mundo aqui é pobre como a gente, ninguém tem nada não, a não ser o pão pra não morrer de fome. Não vou deixar essa casinha aqui e sair por aí feito um desvalido, sem nenhum vintém. Seria morrer do mesmo jeito e sem ter um amigo pra enterrar a gente. Por cima disso, como você mesmo sabe, não vou atrás de peste de político de jeito nenhum, nem que fosse preciso pra num morrer. É tudo uma cambada de gente que num presta, que só quer se aproveitar da gente. Deus me livre. Meus pais me ensinaram a ser pobre, mas com honra, sem precisar de peste de política e de político pra nada. Quanto ao nosso menino, Deus há de salvar ele, como sempre salvou o sertão, cedo ou tarde mas salvou. Vamo cuidar dele aqui mesmo, até que Deus estenda a mão pra lhe afastar essa sina.

continua...

Advogado e poeta

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