Tragédia anunciada

Danilo passou alguns anos dedicado apenas aos esquizofrênicos. Eram tantos num país como o dele, que pouco tempo sobrava para dedicar-se à outra atividade. Relembrar o passado não adiantava nada. “As más lembranças só trazem sofrimento”, dizia para si quando lhe vinha à memória o ocorrido na Itália.

O doutor e o turista nunca mais foram a mesma pessoa. O que fazia não lhe dava satisfação. Dedicava os dias de folga a cuidar dos passarinhos, uma mania do tempo de criança. Também cuidava do cachorro, fiel companheiro nas noites insones. O animalzinho ficava deitado ao seu lado, acomodado no velho tapete da sala. O papagaio, com quem trocava vagas palavras para quebrar o silêncio imposto pela solidão, fazia muita sujeira e gritava feito um desesperado.

Danilo era um celibatário convicto. Na mocidade namorou uma ou outra mocinha. Nunca pensou em casar para não se sentir preso a compromissos ou a pessoas que o impedissem de exercitar suas vontades.

Havia passado três anos da última viagem turística, sem que Danilo visitasse nenhum centro de arte. Na cidade onde morava não se realizavam atividades artísticas nem amostras de arte itinerantes.

A única exposição que os citadinos conheciam era de gado leiteiro, patrocinada anualmente pela prefeitura. O prefeito tinha uma vaidade danada com seus exemplares de raça, puros sangues adquiridos nos maiores centros produtores do país e do exterior. Sua excelência, de origem humilde, nem de longe lembrava o menino que pastoreava meia dúzia de cabras no tabuleiro, garimpando as raras folhagens de pequenos arbustos.

O edil tornara-se rico.

A população pobre do município divertia-se com shows de música sertaneja; aplaudia as duplas contratadas pela edilidade com entusiasmo.

Danilo, não.

Ele não valorizava o medíocre.

Certo dia, resolveu viajar. Iria ao Rio de Janeiro, onde visitaria o Museu da República.

***

Danilo chegou ao Rio de Janeiro num dia de bastante calor. Hospedou-se em hotel próximo a Favela da Rocinha. Da janela do apartamento, via o aglomerado de casas mal construídas, ruas sem alinhamento, elevações íngremes que permitiam avistar detalhes daquele monumental cortiço onde o esgoto descia pelas ladeiras, a céu aberto, e os traficantes impunham ordem e respeito.

A seu modo.

Nas horas em que passou debruçado na janela da qual se dispôs a observar o movimento no morro, presenciou cenas de violência e flagrante envolvimento de policiais com o crime organizado.

Nos últimos minutos de observação solitária, quase foi atingido por uma bala que ficou alojada no umbral da janela.

No dia seguinte, acordou às oito horas. Fez a higiene matinal, tomou uma ducha quente, repousou um pouco na banheira de águas mornas, trocou de roupas e saiu para o refeitório. Pediu para prepararem uma omelete bem caprichada, tomou suco de laranja, depois, desceu as escadas, sem pressa.

No hall do hotel, solicitou um táxi. Eram quase dez horas. Iria iniciar a visita sem muita empolgação.

– Museu da República, por favor!

– Pois não, cavalheiro. Bom dia!

– Bom dia, respondeu ao motorista, um senhor de cabelos grisalhos, torcedor do flamengo, time que ele odiava. Reconheceu a admiração do chofer pelo rubronegro ao avistar um decalque colado no painel do veículo.

– O Museu fica na Rua do Catete. Não sei se o senhor sabe…

– Sim, conheço a história: O palácio foi construído entre 1851 e 1867, para ser residência do Barão de Nova Friburgo, rico cafeicultor daquela época.

– O senhor sabe das coisas! Por quanto o governo comprou o palácio?

– Mil contos de réis. A compra foi efetuada por Dr. Manuel Vitorino Pereira, no exercício da presidência da República, durante a convalescença do presidente Prudente de Morais.

– O senhor sabe por quanto tempo o Palácio do Catete foi sede do governo federal?

– De 1897 a 1960, quando a capital foi transferida para Brasília.

– …

O motorista do táxi levava um bom papo. Era instruído para passar aos turistas a ideia de conhecimento sobre a cidade e monumentos históricos. Depois de enfrentar o caótico trânsito urbano, de ter xingado uma dúzia de condutores de ônibus por suas manobras irresponsáveis, estacionou o carro na Rua do Catete, número 153.

Estavam diante do Museu da República.

O prédio havia sido restaurado nos anos de 1983 a 1989. A fachada externa já denotava o peso dos anos.

Danilo percorreu as instalações do prédio de três andares, que quase serviu às intenções de investidores estrangeiros que o adquiriram intencionando fundarem, ali, o Grande Hotel Internacional, empreendimento que não logrou êxito.

Andou por salões reformados, contemplou móveis, documentos e quadros de algumas personalidades, como o Barão e Baronesa de Nova Friburgo, Desembargador Valdetaro, Conde de São Clemente, Francisco de Paula Mayrink, Manoel Vitorino Pereira e Antonio Parreiras, entre outros. E ainda, pinturas dos dezoito presidentes da República que usaram suas dependências no exercício dos mandatos.

O acervo do Museu da República, aos olhos de Danilo, nem de longe parecia com o dos museus do Louvre, em Paris; do Vaticano, no Vaticano; do Della´Opera, em Florença; de Van Gog, em Amsterdã; do Metropolitan, em Nova Iorque, nem do Palácio de Versailles, em Paris…

Muito pobre, em comparação aos que vira em todos esses

ricos “paraísos” da arte e da cultura.

Durante a visita ao Museu da República, Danilo foi admoestado por duas vezes. Um dos guardas reclamou por haver sentado em uma poltrona localizada atrás da escrivaninha que pertencera a antigo presidente do Brasil, e por tentar escrever com a caneta que serviu a Getúlio Vargas na feitura de sua carta-suicida.

Danilo ficou bastante aborrecido com a arrogância do guardião. Segundo sua avaliação, um homem insensível que o impedia de visitar o passado.

Em face do ocorrido, sentiu-se ainda mais deprimido. Parou em certo ponto do museu, encostou-se a uma janela e começou a escrever em uma folha de papel que trazia consigo.

Escreveu o que julgou suficiente e depositou a folha em um envelope, com o seguinte destino:

“A quem interessar”.

Às cinco horas da tarde, ouviu-se forte estampido em uma das salas do museu. Acorreram ao local e ali encontraram o corpo de Danilo, envolto em sangue, com a cabeça esfacelada.

O guarda que o socorreu encontrou um envelope em cima da mesinha de cabeceira, ao lado da cama em que se deitara para praticar o tresloucado gesto.

A mesa era a mesma em que Getúlio Vargas depositara a sua famosa “Carta-Testamento”. A cama também fora a que o ex-presidente dera o último suspiro, ao se suicidar com um tiro no peito.

A carta que Danilo deixou, dizia o seguinte:

"Mais uma vez, as forças (…) novamente se desencadeiam sobre mim. Não apenas me acusam, insultam-me (…). Precisam sufocar o meu desejo e impedir a minha ação, para que eu continue a contemplar a beleza das artes, como sempre o fiz.

Sigo o destino que me é imposto.

Depois de visitar museus, catedrais e monumentos nas grandes cidades do mundo, fui impedido de continuar essa trajetória.

Tive de renunciar ao que mais gosto de fazer.

Voltei ao Brasil forçado por duas deportações. Não querem que eu seja livre para exercer minha atividade turística.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, intensamente, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando à violência para que seja ouvido.

Agora me sinto desamparado.

Nada mais posso dar a mim mesmo, a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar evitando que me torne feliz, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre junto da arte e da cultura. Meu sacrifício, neste local, me manterá unido aos que pensam como eu, e meu nome será sua bandeira de luta.

Cada gota de meu sangue será uma chama para os que defendem o direito de uma pessoa desejar dar novas cores às pinturas, melhorar e completar esculturas inacabadas, enfim, aprimorar o que fizeram os grandes mestres das artes.

Nada receio.

Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade, e saio da vida com saudades da história".

O polêmico suicida parodiou a carta deixada por Getúlio Vargas no dia 23 de agosto de 1954, quando se suicidou no Palácio do Catete, atualmente Museu da República".

Ainda hoje, Danilo é lembrado por seu gesto extremo.