O médico e o louco

(ANTES, LEIA "DANILO APRONTA MAIS UMA" E "ESCULTOR DE ÚLTIMA HORA")

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E agora, Danilo?

Depois do acontecido na Itália, Danilo voltou à rotina normal no hospital público, onde exercia a psiquiatria. Seu chefe abonou-lhe as faltas ao trabalho, decorrentes dos dias passados na Europa. Os amigos Enéas e Glória tentaram evitá-lo, pois não desejavam constrangê-lo com suas presenças, depois do triste incidente em terras italianas.

O Hospital da Restauração das Faculdades Mentais, também conhecido como HRF, com o “M“ propositadamente omitido para facilitar a pronúncia, ficava nos arredores da cidade, distante cerca de trinta quilômetros do centro.

Tratava-se de um edifício de quatro andares, servido por elevadores que nem sempre funcionavam. Na maioria das vezes os pacientes eram levados às clinicas nos andares superiores, vestidos em camisas de força, segurados por dois enfermeiros que os conduziam escada acima. O pátio era arborizado por plantas necessitadas de podação para retirada dos galhos secos que ameaçavam cair sobre as pessoas. Uma piscina antiga era o único lazer dos doentes, um número considerável deles.

Certa tarde de calor intenso, doutor Danilo, da janela do segundo andar, olhava os pacientes dispersos pelo pátio. Uns conversavam com gestos demasiados; outros permaneciam deitados, sonolentos, motivados pelo efeito das fortes drogas obrigados a ingerir. Havia, ainda, aqueles senhores circunspetos, fazendo-se passar por alguma personalidade ilustre de antigamente. Um deles dizia ser Napoleão Bonaparte.

Em hospitais psiquiátricos tem sempre um Napoleão. Um imperador que se julga mais culto, mais inteligente, mais forte, superior aos demais. Assim como fazem alguns dos que habitam o outro lado do muro daquele hospital. “Os normais”.

Postado no alto da janela, Dr. Danilo viu um dos pacientes atirar-se à água para salvar um colega que parecia afogar-se. O interno nadou, retirou o companheiro, salvou-lhe a vida.

Dr. Danilo achou interessante o gesto do rapaz e resolveu descer e ir ter com ele uma conversa. Desejava dar-lhe os parabéns pela heróica façanha. Já no pátio, encontrou o paciente-herói sozinho em um canto, ainda molhado.

– Meus parabéns, amigo. Grande gesto o seu! Salvou o colega de iminente afogamento. Meus parabéns! Onde está o paciente que você retirou da piscina?

– Doutor, ele estava muito molhado; então, amarrei uma corda e pendurei-o pelo pescoço, ali, naquela árvore, para secar – disse, apontando para um corpo que pendia de um galho seco.

***

Dr. Danilo passava quatro horas diárias no HRF. Atendia no consultório, visitava doentes nas enfermarias…; inisistia com o relógio para que as horas passem depressa.

O tempo corria inexoravelmente.

Já prestes a encerrar o trabalho, em dia de forte calor, entrou um paciente em seu consultório.

– Doutor, estou muito doente! Não consigo comer mais de dezessete bananas. A última só entra quando a empurro com o dedo.

- …

– O doutor já comeu banana com querosene? É ruim, né?

- ...

Assim, Dr. Danilo levava a vida, depois da última viagem à Europa. Sempre lamentava não poder retornar para atender aos desejos de estar próximo das artes.

As crises psicóticas haviam diminuído.

Cedera lugar à depressão.

***

Danilo encontrou-se algumas vezes com Enéas e Glória, conversaram bastante, jantaram juntos, assistiram a filmes e a peças teatrais. Nunca tocaram no incidente ocorrido na Itália, nem fizeram novos planos de viagem.

Um belo dia, Danilo decidiu: iria visitar os museus brasileiros.

Valeria à pena? – perguntou-se, indeciso.

– Talvez sim – respondeu contrafeito.

Papel e caneta à mão, começou a listar os principais museus do país: Museu da República, Museu de Arte Moderna, Museu do Ipiranga, Casa de Portinari… no Rio de Janeiro e em São Paulo.

– E depois? – fez para si nova indagação; respondeu-a introspectivamente:

– Em seguida, visitarei o Memorial JK, Casa do Candango, Casa do Violeiro, em Brasília; Museu do Frevo, Museu de Luiz Gonzaga, Museu do Mestre Vitalino, em Pernambuco; e Museu da Cachaça, em Maranguape, no Ceará.

– Valeria à pena? – questionou-se novamente, para, em seguida, responder:

– Talvez não. Afora os quatro primeiros, não tão extraordinários assim, nos demais iria ver apenas fotografias, canetas, apontamentos, objetos pessoais, o penico onde certo personagem famoso teria feito suas necessidades fisiológicas… e muitas outras bobagens, como os bonequinhos de barro do Mestre Vitalino, tão interessantes quanto os que ele confeccionara na infância – disse para si, desanimado..

– Valeria à pena? – perguntou-se, por último.

– Não! – respondeu, temeroso. O risco de ser assaltado, sequestrado ou atingido por uma bala perdida não valeria a pena.

O desiludido turista resolveu ficar ali mesmo, naquela cidade sem movimento, desprovida de atrativos, carente de atrações culturais de que tanto gostava.

A única ocupação do doutor Danilo era atender aos pacientes do HRF, um manicômio de construção antiga, mobiliado por móveis corroídos pelos cupins, a pintura das paredes desbotada e os equipamentos necessitados de urgente reparação.

O HRF assemelhava-se aos demais nosocômios do país, em que as autoridades, negligentes e irresponsáveis, relegam esses empreendimentos a planos secundários.

Uma história repetida à exaustão, Brasil afora!