Escultor de última hora

Danilo e seus amigos alugaram um automóvel e saíram estrada a fora. Atravessaram túneis abertos nas rochas das muitas elevações montanhosas existentes em solo italiano. Os túneis são abertos nos dois sentidos – mão e contramão – e somam quase duas centenas. O maior deles mede cerca de onze quilômetros.

– Aquela placa indica acesso à Pistóia – disse Enéas, com o dedo indicador da mão direita voltado para uma via que leva à cidade onde foram enterrados os pracinhas brasileiros, mortos durante a Segunda Grande Guerra.

– Cerca de trezentos valorosos combatentes, nossos patrícios, tombaram em solo italiano, em defesa dos ideais de liberdade contra o Nazismo – observou Danilo.

– Pois é. A liberdade é de difícil conquista. Ainda hoje enviamos tropas para apaziguar ânimos beligerantes em diversas partes do mundo – complementou Glória.

– Logo nós, um país sem tradição guerreira. A guerra é o oposto da paz – finalizou Danilo, para surpresa dos amigos que o consideravam culto e inteligente.

Viajavam com destino a Florença, aonde chegaram às primeiras horas da noite.

Depois de reconfortantes banhos quentes, e de trocarem as roupas da viagem, os amigos voltaram a se reunir para animado bate papo.

– No século XIII, os artistas que trabalhavam em Florença eram fortemente influenciados pela arte bizantina – disse Danilo, após tomar um excelente sorvete napolitano.

– É verdade. Com o tempo, livraram-se dessa influência e passaram a exercitar a arte de uma nova escola, denominada “florentina” – complementou Enéas.

– Comandados por Giotto di Bondone – arrematou Glória.

– Aqui nasceram Michelangelo, Dante, Maquiavel… – suspirou Danilo.

– A arte de esculpir foi iniciada em Florença por Nicola Pisano. Michelangelo, todavia, revelou-se sua expressão maior. E influenciou todos os escultores florentinos de sua época – falou mais uma vez Enéas.

Os três amigos não apenas demonstravam erudição em suas conversas. Revelavam grande interesse pelas artes. Firenze abria as portas a esses eruditos cidadãos brasileiros que a visitavam para conhecê-la o mais intensamente possível.

Na bela catedral da cidade, encontraram variados monumentos, inclusive funerários, com túmulos de grandes personalidades, como reis, príncipes, artistas… Contemplaram obras de Andrea de Castagno, expostas no mausoléu de Nicolau de Tolentino; de Paolo Uccello, sobre a tumba de Giovanni Acuto, um aventureiro inglês que morreu a serviço da República Florentina… Viram e maravilharam-se com um grande painel de autoria de Domenico de Michelino, de 1465, colocado na abertura do arco da nave esquerda da catedral.

- Trata-se da obra “Dante e a Divina Comédia”; representa o inferno, o purgatório, e o paraíso – disse Danilo aos amigos.

– …

– Bem, gente, agora vamos ao Museo Della´opera que faz parte do complexo da catedral – convidou Danilo, no que foi seguido pelo casal.

Estiveram na Sala dos Coros, viram diversas esculturas em seus pedestais, outras afixadas nas paredes laterais e, ao fundo, também preso à parede, um lindo tapete com gravuras da época. Admiraram as esculturas de Jeremias, Maria Madalena, entalhada em madeira, e de um hexágono que retrata a “embriaguez de Noé”, conforme menciona a Bíblia.

– As Capelas dos Medicis constituem grande e importante complexo arquitetônico. Vamos até lá? – convidou Enéas.

– Essas capelas são célebres por exporem obras de Michelangelo. Sua cúpula… olhem, apontou Danilo com o dedo indicador da mão direita para cima. – Assemelham-se à da catedral: monumental e exuberante!

– Vejam! Aqui é a Capela dos Príncipes. Nas paredes estão sarcófagos de seis grandes duques da família. Essas esculturas em bronze dourado estão sobre as criptas de Ferdinando I e de Cosme II. Na parte inferior, vocês vêm os escudos das cidades da região de Toscana, de onde se originaram os Medicis – concluiu Danilo a exposição que fazia naquele instante.

– Essas esculturas são de Michelangelo – apontou Enéas para quatro magistrais obras do famoso gênio: “A Noite”, “O Dia”, “O Crepúsculo” e “A Aurora”. – As duas primeiras estão sobre os túmulos de Giuliano e as últimas sobre o de Lorenzo.

– Ah, vamos visitar o Campanário? – pediu Glória aos amigos.

– Não. Fiquemos por aqui até concluirmos a visita. Ao final, veremos a obra de Giotto, como você quer – respondeu Enéas.

– Está bem. Amanhã visitaremos o Pórtico dos Lanzi, uma construção de 1383; veremos obras de Giambologna e a escultura em que Perseu exibe uma espada na mão direita e uma cabeça decepada na esquerda – concordou Glória.

Em certo momento, Enéas deu-se conta da ausência de Danilo. “Teria ido ao banheiro” – pensou, despreocupado. Esperou alguns minutos e em seguida, ele e a mulher, foram a um ambiente contíguo.

Nessa sala, o casal encontrou Danilo vestido numa roupa listrada de amarelo e branco, que ia até a altura das coxas, um pouco fofa nas pernas, como as usadas pelas crianças.

Por baixo daquela estranha indumentária, vestia meias compridas que alcançavam a região pubiana; na cabeça, exibia uma toca vermelha, inclinada para o lado direito.

Nas mãos, um martelo e um cinzel, com os quais batia vigorosamente na grande escultura inacabada, deixada por Michelangelo.

Essa obra, de estimável valor artístico e sentimental para o escultor, que planejara colocá-la no próprio túmulo, quando morresse, representa Cristo descido da cruz, juntamente com três outras pessoas, seus seguidores.

Michelangelo havia dado à obra o título La Pietá, a mais dramática das Piedades por ele esculpidas.

Os seguranças, de pronto, aprisionaram Danilo. Havia desferido poucos golpes na obra do Grande Mestre das artes. Levado à polícia, confessou que pretendia terminar de esculpi-la, pois “o mundo não podia ser privado de contemplá-la devidamente concluída; esperava revelar as formas que o autor pretendia exibi-la”.

Ele, Danilo, saberia como fazê-lo.

***

Enéas e Glória não acompanharam o amigo à chefatura de polícia. A decepção e a tristeza forçaram o casal a retornar ao Brasil.

Danilo ficou na Itália até que as autoridades o julgassem. E novamente foi comprovada a sua loucura, manifestada por crises psicóticas que se repetiam em períodos imprevisíveis.

Ao final do inquérito, Danilo foi extraditado pela segunda vez. Pela França e pela Itália, países signatários do bloco da União Européia.

Dessa forma, não mais poderia viajar a nenhum outro país da comunidade. O que faria ele, doravante, sem visitar museus, catedrais, galerias de arte e grandes eventos culturais?

No Brasil… Ah, no Brasil seria diferente. Ele poderia fazer seus roteiros turísticos, talvez sem empolgação, mas teria muito a fazer. Várias das poucas obras de que dispomos estão danificadas, semidestruídas, carcomidas pelo tempo, corroídas pelo cupim… Tudo por falta de cuidado e por excesso de irresponsabilidade do administrador público.

Danilo, com sua inclinação para restaurador de obras artísticas teria bastante serviço. Até por que as autoridades e os policiais, negligentes e irresponsáveis, não se importariam com o que ele fizesse em suas andanças pelos pobres museus brasileiros.