As aventuras de Danilo
Antes de viajar a Paris, Danilo estudou com afinco a história e o acervo do Museu do Louvre, pois pretendia aproveitar ao máximo a visita que faria proximamente ao “templo das artes”, como passou a chamá-lo, despreocupado com a idéia de alguém antes dele já ter usado a expressão.
Pesquisou bastante e aprendeu muito sobre a origem do Louvre. Soube, por exemplo, que o rei Filipe Augusto, por volta de 1200, construíra uma fortaleza com a finalidade de proteger o tesouro real e os arquivos do Estado. Informou-se, também, que duzentos anos depois, a fortaleza fora utilizada por Carlos V, depois de ampliá-la e transformá-la em residência oficial.
Danilo instruiu-se mais:
Soube que Francisco I mandou demolir o antigo edifício e iniciou a construção de novo palácio, cujos trabalhos foram sequenciados pelo rei Henrique II. Falecido o rei, a viúva, Catarina de Medicis, continuou o projeto. Mandou construir o palácio Tulherias e o anexou ao Louvre.
Os trabalhos de ampliação do edifício prosseguiram no reinado de Henrique IV e nos dos seus sucessores, os reis Luis XIII e Luis XIV. A ampliação do então palácio, todavia, sofreu interrupção em 1682, quando a Corte transferiu-se para Versailles.
O estado de abandono, a partir daí, quase resultou em sua demolição, por ter-se transformado em ruínas. Sucessivas retomadas da construção ocorreram ao longo dos anos, com o retorno da Corte a Paris.
Em 1871, finalmente, o Louvre ficou com a sua arquitetura atual. Em 10 de agosto de 1793, tornou-se definitivamente um Museu.
Esse que Danilo iria conhecer.
O rapaz visitaria o museu para apreciar telas de expressivos pintores, ambientes épicos bem decorados, jóias elaboradas por ourives do mundo antigo, e um sem-número de objetos criados pela genialidade de inigualáveis artesãos. Apreciaria peças encontradas no Egito, Grécia e em outras localidades da Europa, da África e da Ásia. De onde quer que tenham sido encontradas essas preciosidades.
Para a visita ao Louvre, Danilo arquitetou audacioso plano. Pretendia passar uma noite inteira no museu. Sentia-se fascinado ao imaginar-se em ambiente construído em tempos remotos, observado por personagens que vivenciaram a história, embora representados em telas, gravuras e esculturas de variadas cores, formas e tamanhos.
Fantasiava participar de banquetes, reuniões, episódios, situações e manifestações reproduzidas nas telas de grandes pintores, nos trabalhos de magistrais escultores e nos objetos elaborados por mãos habilidosas e criativas.
Certo dia, na hora de encerramento do expediente de visitação, conseguiu esconder-se por trás de uma armadura. Com cuidado e gestos delicados, fez-se vestir daquela roupa de metal e ali ficou imóvel.
Os freqüentadores do museu foram saindo um a um. O silêncio logo dominou o ambiente. Por segurança, resolveu ficar ali por mais alguns minutos, vestido na armadura, até que os guardas dessem por encerrada a inspeção.
Enquanto aguardava a hora de sair do seu esconderijo, repassou, mentalmente, os conhecimentos literários adquiridos durante anos de estudo sobre a história das artes.
E, também, das artes dos que fizeram a história.
E foram muitos!
O visitante noturno viu os ponteiros do relógio formarem uma linha vertical inconfundível: dezoito horas.
Os sinos da Catedral de Notre-Dame repicaram. Confirmavam a hora do “ângelus”, celebrada pela Igreja Católica, diariamente.
A sala em que Danilo se escondera estava iluminada por luz suave, quase uma penumbra. Ele, pacientemente, tentava se libertar da incômoda vestimenta metálica. Quando despia a última peça da armadura, deixou-a cair com um pequeno barulho, insuficiente para chamar a atenção dos seguranças.
A partir daí, entregou-se ao devaneio.
Andou por salas cheias de móveis da época de Henrique II, dos reis Luis XIII, XIV e XV, sentou-se em algumas poltronas, olhou para quadros e objetos, deitou-se na cama que pertenceu a Napoleão III, vestiu roupas da era medieval, trajes de reis e de príncipes. Chegou a calçar os sapatos dourados que pertenceram ao rei Carlos I, comparando-se à sua majestade, ao vislumbrá-lo em uma tela de Antoine van Dyck; faltava-lhe, para completar a caracterização, apenas a bengala e a espada, ainda não conseguidas.
Diante da obra de Jean-Honoré, denominada “As Banhantes”, sentiu os efeitos eróticos de sua imaginação ao ver a nudez daquelas mulheres de corpos rosados, com nádegas, seios e sorrisos convidativos. Sentiu-se excitado e convidado a participar de uma noite de amor, que ele, sem resistir, participou solitariamente.
Ao contemplar a tela “O Rapto das Sabinas”, de Nicolas Poussin, já de posse de uma espada adquirida na Sala das Armas, revoltou-se com a atitude daqueles homens rudes e covardes. Como bestas selvagens, seguravam mulheres desesperadas à procura da liberdade que jamais viria. Indignou-se com o fato de pais e maridos ficarem sem suas respectivas filhas e esposas, raptadas para deleite sexual de seus inimigos.
Vestiu-se como cavalheiro da época. Trajado com uma túnica cor de abóbora, surrupiada de um armário próximo, empunhou a espada e investiu contra a obra, retalhando-a em vários lugares.
Passada a crise psicótica, retirou-se, ao ouvir passos no corredor lateral. Era um dos seguranças que vistoriava o ambiente. O guarda abriu a porta, olhou para os quatro cantos da sala e concluiu pela normalidade do lugar.
Danilo tinha a imaginação fértil.
Também era bastante versátil.
A cada instante, transformava-se em um personagem dos muitos expostos nas telas e esculturas abundantes no local.
Ao contemplar obra de Louis Le Nain, “Família de Camponeses”, desejou participar da cena. Rasgou parte das vestes que trajava na ocasião, a fim de ficar com aparência humilde.
Sentou-se em uma cadeira e imaginou-se ali, naquele ambiente rústico, a conversar com o camponês, sua esposa e seus quatro filhos, além de outro membro da família; o cachorro pareceu-lhe sardento e o gato gordo, possivelmente por comer ratos existentes com abundância naquela casa.
Bebeu vinho imaginário com os seus supostos anfitriões e até sentiu-se tonto após “tomar” a bebida que julgou de má qualidade.
Posteriormente, esteve na sala das múmias egípcias, abriu sarcófagos e, como médico, resolveu praticar um pouco de anatomia. Com um sabre que trazia à cintura, possivelmente pertencente a Napoleão II, começou a dissecar o cadáver, cujo dono, concluiu, teria morrido de lepra.
Às cinco horas da manhã, um guarda fazia a ronda da madrugada e encontrou Danilo deitado na cama que pertenceu à Catarina de Médicis, abraçado ao quadro de La Gioconda, que ele preferia chamar de Mona Lisa, e por quem se sentia perdidamente apaixonado.
O guarda fez soar o alarme e outros acorreram ao chamado de emergência. Prenderam e manietaram Danilo, sem qualquer resistência. O rapaz ainda estava sonolento, quando o levaram preso. Julgaram-no um vândalo, por danificar a valiosa obra o Rapto das Sabinas, de Nicolas Poussin.
Danilo foi deportado para o Brasil.
Uma junta médica francesa constatou que ele sofria de surtos psicóticos e o absolveu.
Dizem que de louco, todo mundo tem um pouco. E que alguns psiquiatras são malucos potenciais. A ciência ainda não confirmou as duas suspeitas.
Lamércio Maciel Braga