Tragédia familiar

Haroldo foi sequestrado em 22 de setembro. Chegara ao estacionamento do Shopping às quatorze horas daquela tarde de primavera, temperatura na casa dos 31 graus, calor sufocante, clima seco e de baixa umidade.

Mal iniciara o fechamento dos vidros do carro, foi abordado por dois assaltantes. Segundo testemunhas, um era magricela, de 1,70m, aproximadamente, cerca de dezessete anos; o outro, alto, forte, musculoso, de 1,80m, talvez já tivesse completado o vigésimo aniversário. Ambos tinham a cútis morena, não tão escura, os cabelos raspados à moda Ronaldinho, O fenômeno, vestiam calças jeans e camisas de malha branca com gravuras no peito.

Os criminosos surgiram inesperadamente por trás de outro veículo. Armas em punho, anunciaram o assalto.

– É um assalto, malandro! Sai do carro, rápido! – gritou o mais forte, puxando Haroldo pelo braço.

O bandido empurrou o encosto do banco dianteiro esquerdo para frente, indicou a parte traseira do veículo com a arma e forçou a vítima a entrar. Antes, lembrou-lhe para não esboçar qualquer reação.

– Quieto, se não morre! – anunciou o assaltante que entrara pela porta direita e já se encontrava ao lado de Haroldo.

O bandido que escoltava Haroldo bateu com a arma fortemente na cabeça da vítima. O rapaz sentiu algo escorrer pela face, um líquido quente que ele não teve dificuldade de identificar como seu próprio sangue.

A dor foi superada pelo medo da morte.

Haroldo olhou para o algoz e percebeu em seus olhos a frieza do assassino.

Assustado, não disse palavra.

O primeiro bandido a abordar Haroldo, sentado ao volante, acionou o motor e arrancou em disparada. Os pneus cantaram no asfalto quente do estacionamento, dando a impressão de existirem fantasmas na pista, decorrente da alta temperatura no chão escuro, desenhando figuras disformes.

Enquanto o carro deslizava veloz para destino incerto, Haroldo repassou na mente a trajetória da sua vida: Estava com vinte e três anos, pesava 70 quilos, bem distribuídos pelos cento e setenta e cinco centímetros de altura. Os cabelos eram castanhos, os olhos claros, as sobrancelhas espessas, o nariz ligeiramente arrebitado.

Julgava-se um rapaz simpático e de boa aparência. A família era bem estabelecida, social e economicamente. Em dezembro próximo, concluiria o curso de direito e pretendia advogar causas que envolvessem questões agrárias. Intimamente, sentia forte admiração pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST, de quem guardava lembranças de ocupações para ele justas e merecidas.

Seu pai, viúvo há pouco tempo, era fazendeiro no estado de Goiás. Possuía muitas terras, a maior parte ocupada com lavouras e pastos, porém milhares de alqueires desafiavam a imaginação

dos “combatentes” do MST, dispostos a ocupá-las brevemente.

O rapaz despertou de seus pensamentos ao ouvir os pneus do carro cantar barulhentamente, quando o pedal de freio foi acionado de forma abrupta. O motorista abriu a porta com violência, saiu, baixou o encosto do banco dianteiro esquerdo e anunciou:

– Desça rápido, cara. Vamos! – disse, a arma em punho, segurada com a firmeza de quem estava habituado a usá-la.

O segundo assaltante desceu do veículo, empurrou Haroldo à sua frente e bateu-lhe novamente com a coronha do revólver na cabeça que ainda sangrava. A vítima tropeçou e caiu sem defesa, pois tinha os olhos vendados por um capuz preto e as mãos atadas com cordas de náilon.

Haroldo foi erguido pelos bandidos, sustentado pela curvatura dos braços amarrados para trás e levado a um pequenino quarto mobiliado apenas por uma cama de solteiro e uma cadeira almofadada por tecido outrora bege, agora sujo e rasgado. Sobre a cama, um colchão em péssimas condições de higiene, sem travesseiro e nenhum lençol.

Retiraram-lhe a venda, desataram os nós da corda que o manietava e o empurraram para cima da cama que por pouco não se espatifou sob o peso do jovem sequestrado. Amarraram-lhe um dos pés à parte inferior da cama e a mão esquerda a uma das barras verticais da cabeceira, de sorte que Haroldo ficou deitado, o braço esquerdo formando uma linha diagonal à perna direita. Olhava os criminosos de baixo para cima. Um dos bandidos disse:

– Fale com seu pai ao telefone. Diga que foi sequestrado e que exigimos trezentos mil reais para soltar você. A polícia não deverá ser informada. Esperamos o dinheiro em três dias, em sacola de plástico preta, a ser entregue a enviado nosso. Daremos detalhes depois.

Esforçando-se, Haroldo discou o número da residência com a mão livre, até que ouviu a voz do pai do outro lado da linha a questionar o nome do interlocutor.

– Quem fala? – perguntou o pai, aguardando resposta.

– Alô pai, sou eu, Haroldo! Fui sequestrado. Estou amarrado a uma cama, sob a mira de dois revólveres. Os sequestradores exigem trezentos mil reais de resgate. O dinheiro deverá ser entregue em três dias. Darão detalhes posteriormente. Ajude-me, pai! Eles são violentos. Estou com medo!

Ao ouvir a notícia, o velho temeu pela vida do filho. Há poucos dias um amigo da família fora assaltado e morto impiedosamente. O sofrimento do pai da vítima passou-lhe pela lembrança como um filme de terror. Fortíssima dor acometeu-lhe o peito esquerdo naquela hora de desespero.

O fazendeiro foi abatido por violento infarto.

Caiu no chão pesadamente, arrastando consigo os enfeites da mesa sobre a qual se encontrava o telefone.

Estava morto.

Do outro lado da linha, o filho ouviu o ruído da queda.

– Alô, pai, o que aconteceu? Pai… fale… O que houve? Alô! Alô! ...

Sílvia, a irmã, ouviu o barulho dos objetos quebrados e o som do corpo pesado ao cair. Entrou na sala e deparou-se com o pai no chão, a cabeça sangrando por ter batido em um móvel próximo. A vítima segurava o telefone. Ainda se ouvia a voz desesperada de Haroldo:

– Alô... Alô...

Sílvia, ao ver o pai caído, inerte, debruçou-se sobre ele. Auscutou-lhe o peito, apalpou-lhe a carótida e certificou-se de que a vida o deixara. Segurando o telefone, retirado da mão que tanto afago lhe fizera, indagou:

– Alô, quem fala?

– Sou eu, Sílvia; Haroldo, o que aconteceu?

– Papai estava ao telefone, quando caiu fulminado por um enfarte.

Está morto. Você… onde está?

– Ele está morto? ... Papai morreu, Sílvia? Um enfarte... Ai, meu Deus! E agora? Fui sequestrado. Estou aqui, amarrado, sobre a mira das armas de dois elementos perigosos. Eles exigem trezentos mil reais de resgate. Do contrário...

Foram as últimas palavras do irmão, ouvidas por Sílvia. Dois tiros seguidos puseram fim à vida de Haroldo aos vinte e três anos de idade.