Surpresa indesejada
Em 1943, Isabel já havia completado seu oitavo aniversário. O pai morrera dois anos antes, vitimado pela tuberculose, doença terrível, de efeito social devastador.
A casa da avó, dona Chiquinha, ficava a uma distância de quarenta metros da dela. Lá moravam dois primos seus, filhos de uma tia morta aos vinte e três anos, de doença não diagnosticada. A família supunha ter sido de meningite.
Sua mãe e os dois irmãos passavam quase todo o tempo ali, naquela casa pequena e escura. Isabel e os primos, além do irmão, vez ou outra se aventuravam a uma fugidinha; iam à casa ao lado, onde morava uma família de negros, os Lalau.
O nome Lalau não era aplicado àquela família como hoje se faz aos que se apropriam do patrimônio alheio, principalmente de bens públicos. Lalau era nome de família daqueles negros, pessoas honradas, sobreviventes de um período vergonhoso da nossa história.
Os vizinhos chamavam ao velho e à velha de seu Lalau e de dona Lalau; o filho e a filha respondiam, respectivamente, pelos nomes de Severino e Maria das Dores, sempre acrescido do sobrenome Lalau.
Isabel, a mais velha da turma, frequentava a casa daqueles negros às escondidas, acompanhada dos irmãos e dos primos. Ela e os garotos gostavam de receber, principalmente de das Dores, deliciosos bolinhos de polvilho, preparados para serem vendidos no mercado público em dias de feira-livre.
A família dos meninos, a avó em primeiro lugar, não permitia que eles comessem os saborosos mimos por julgá-los preparados sem a mínima higiene. As crianças, porém, olvidavam as orientações dos adultos. Nem ligavam para o que diziam. E fartavam-se com as guloseimas!
Isabel gostava muito dos negros. Sentia por eles certa piedade. Lembrava-se das aulas escolares, através das quais aprendeu que, em 1559, um pouco mais de meio século do descobrimento do Brasil, a Coroa Portuguesa autorizou a compra de negros vindos da África. Os coitados eram transportados em precários e desconfortáveis navios, sujeitos a doença, a fome e ao maltrato dos mercadores que os açoitavam impiedosamente.
Na escola, Isabel também ouviu da professora que os negros serviam como elemento de troca por mercadorias, como o fumo e a cachaça, por exemplo. Quando o navio aportava na colônia, os negros eram vendidos e levados por seus senhores às fazendas e aos engenhos de cana-de-açúcar. Cada senhor comprava até cento e vinte escravos por ano.
Os negros moravam em senzalas e recebiam como principal alimentação a farinha de mandioca e o milho, com os quais preparavam o mingau que lhes garantia a força para o trabalho escravo.
Os capitães do mato os puniam severamente quando fugiam. Aplicavam-lhes açoites com chicotes de couro, chamados bacalhau. Apanhavam presos a um poste chamado Pelourinho.
Os negros fugiam para os quilombos e ali se estabeleciam em vilas com até vinte mil habitantes, os quilombolas. Alguns morriam de banzo, doença caracterizada por causar profunda tristeza; para outros, o suicídio aliviava o sofrimento.
A abolição dos escravos ocorreu em 1888. Em 1943, ano do nascimento de Isabel, portanto, cinquenta e cinco anos depois de a Princesa homônima assinar a lei libertadora dos negros, eles foram resgatados dos grilhões que os aprisionavam.
Tornaram-se livres.
Ou quase.
A lei abolicionista não obrigou o governo a indenizar os libertos, nem lhes assegurou o direito à propriedade, à educação e muito menos lhes proporcionou condições de vida menos aflitiva. Sem poder viver por conta própria, continuaram vinculados aos ex-donos, seus novos patrões, em troca de salário aviltante.
Os ex-escravos davam aos filhos, como nome de família, o sobrenome de seus ex-senhores: Braga, Alcântara, Menezes… Daí, uma pessoa de pele branca, olhos claros, às vezes azuis, chegar a ter o mesmo sobrenome de um negro, cabelos encaracolados, nariz achatado…
Isabel era potiguar. Nascera em Mossoró, principal cidade do estado do Rio Grande do Norte. Orgulhosa, dizia aos amigos ter sido sua terra natal a primeira a fazer campanha para a libertação dos escravos. Em suas palestras com colegas de trabalho, contava-lhes a história da escravidão no Brasil. Sabia de cor a data em que Rui Barbosa assinou o despacho autorizando a incineração de todos os documentos relativos ao período escravocrata brasileiro.
Com esse despacho, o ilustre baiano impediu, em 4 de dezembro de 1890, que os donos de escravos fossem indenizados pelos negros que seriam libertados. No Brasil, os poderosos sempre foram favorecidos. Evitou-se, dessa forma, o benefício a uma categoria sem méritos. Por outro lado, não houve reparação dos malefícios provocados a uma raça humilhada e envergonhada por ter sido escravizada por longos anos.
Já adulta, Isabel deixou Mossoró, suas raízes, seus amigos e fixou residência em Salvador, na Bahia. Desejava estar próxima da história do negro. Algumas pessoas de seu relacionamento pessoal costumavam dizer que ela gostava mesmo era de “ver a coisa preta”.
Uma brincadeira, sem nenhum valor discriminatório, sem qualquer racismo, sem outro propósito a não ser o de… fazer piada.
Em Salvador, aos vinte e cinco anos, Isabel concluiu o curso de medicina. Gostava tanto de história que escolheu a primeira faculdade de medicina instituída no Brasil. Nos últimos meses de estudo, namorou um rapaz a quem muito se afeiçoou. Pretendia casar-se e constituir família.
A mãe e a avó de Isabel eram racistas. Não admitiam a mistura de raças. Respeitavam o negro, elogiavam-lhe os feitos, mas não aceitavam sua aproximação com os brancos.
– Cada um no seu devido lugar – comentava a avó, quando o assunto vinha à baila e ela tinha que emitir sua opinião.
– Negro bom, aquele! – dizia a mãe, dona Ana, mais moderada, ao referir-se a pessoa de pele escura, objeto de determinado assunto.
– Se não fosse negro… – alfinetava a avó, na tentativa de corrigir os rumos da conversa.
– Negro “homem”, esse seu Benedito…
Essas observações e comentários revelaram-se comuns naqueles idos de mil novecentos e quarenta… início dos anos cinquenta. Pareciam resquícios dos velhos tempos da escravatura.
As pessoas mais antigas morreram, as mais novas receberam outras influências, a sociedade modificou-se, as associações de direitos humanos proliferaram… Por fim, a “redenção” do negro. O direito de igualdade entre as raças é ordem constitucional. Mas, infelizmente, o negro ainda sofre certa discriminação, embora muita coisa tenha realmente mudado.
Isabel não chegou a casar. O namoro e o noivado ruíram; a falta de entendimento entre o casal levou a esse desfecho. Meses depois, a filha disse à mãe estar grávida, prestes a ganhar o primeiro filho. A futura vovó deveria assistir ao parto. Dona Ana viajou de Mossoró a Salvador com esse propósito. No dia marcado, a cesariana foi cancelada, pois Isabel desejava ganhar o filho naturalmente.
A mãe ficou ao lado da filha. Tentava acalmá-la, afagando-lhe os cabelos. Por fim, o médico retirou a criança, presa pelos calcanhares.
– Um negro? – gritou, descontrolada, a traumatizada avó.
A mãe de Isabel, ao desmaiar, quase arrasta a filha na súbita queda que sofreu, pois estava a segurar-lhe a mão quando ouviu o choro forte de um menino negro, seu neto, que ela por certo resistiria em aceitar.
Dona Ana ainda não havia admitido a igualdade das raças. A pele poderá ser negra, mas a alma das pessoas será sempre igual às outras, diante de Deus, o criador de todas as coisas. Ela, todavia, não pensava assim.
A surpresa da rejeição foi maior entre os defensores da igualdade das raças, que se perguntavam: “Logo de Mossoró, berço das campanhas para erradicação da escravatura, viera tão forte sentimento racista?”
Lamentável, porém, verdade.