A vitória da Justiça

Ao sair do escritório, apressadamente, portava minha inseparável pasta-executiva, abarrotada de papéis, nem todos de grande utilidade. Poderia desfazer-me de considerável quantidade deles, sem nenhum prejuízo a lamentar.

Muitos afazeres e pouca disposição para uma boa limpeza faziam desse pequeno instrumento de trabalho um recheado arquivo ambulante de minhas atividades profissionais.

Sou advogado, graduado em faculdade particular de Direito. Com muito esforço, reciclei meus tímidos conhecimentos acadêmicos e inscrevi-me na Ordem dos Advogados.

Fiquei endividado após a conclusão do curso. Precisaria trabalhar muito para amortizar os empréstimos contraídos para pagar os estudos. O governo facilitou o crédito, porém cobrou juros escorchantes após minha formatura.

Tive que ir à luta.

Estabeleci-me num pequeno escritório, dividido com outro colega. Assim, repartíamos os gastos administrativos. A secretária fazia as vezes de faxineira.

O edifício onde estava situado, no segundo andar, não tinha elevador. As escadas em espirais tornavam-se mais íngremes do que pareciam.

O aparelho de ar condicionado servia mais para fechar a abertura na parede do que para refrescar o ambiente. Quando o calor era intenso, ligava o ventilador que soprava com força, fazendo esvoaçar importantes papéis depositados sobre as mesas.

Boa parte dos meus clientes era de pequenos empresários que me contratavam para defendê-los na Justiça do Trabalho. No restante deles, incluíam-se gêneros variados. Face às dificuldades financeiras, não podia me dar ao luxo de uma especialização jurídica. Um dia seria criminalista, por sentir certa inclinação para esse ramo do direito.

Certa vez, ao descer as escadarias do prédio quase trombei com um cliente que viera informar-se sobre uma demanda judicial movida contra o governo.

– Para onde vais, assim, com tanta pressa? – perguntou ao ver-me descer as escadarias do prédio de dois em dois degraus, sujeitando-me a um acidente que complicaria ainda mais a minha agitada vida de causídico, iniciada há cinco anos.

– Olá, senhor Martins! Quanto tempo? – cumprimentei-o com um aperto de mão, depois de ter passado a pasta para o lado esquerdo e colocado o telefone celular no bolso superior do paletó.

– Que pressa é essa? – insistiu o cliente.

– Preciso ir à capital para uma audiência importante. São duzentos quilômetros de estrada ruim, cheia de buracos, como o senhor sabe.

– Como está aquela ação contra o governo?

– Está tudo parado, na Justiça. A greve do Judiciário tem retardado o julgamento das ações. E os Juízes ainda falam em aderir ao movimento.

– Acho que deveríamos tentar um “acordo” com os advogados do governo. Poderíamos propor-lhes propina para perderem o prazo processual. Isso é comum entre eles.

– Eticamente, não concordo – falei decidido.

– Para os diabos, a ética! – retrucou visivelmente irritado.

– Sou um profissional zeloso. Sentir-me-ia envergonhado propondo um “acordo” desses. Eles poderiam gravar a conversa e prender-me por corrupção ativa. Sinceramente… não sou a favor da ideia. O meu caráter não permite e a minha consciência não me deixaria em paz se agisse dessa maneira.

– Que bobagem! Quantos não fazem assim, sem nada lhes acontecer? São poucos os flagrados nessas “reuniões de negócios”.

– Sim, mas esses poucos já foram presos.

– E soltos. A justiça não alcança essa gente, doutor. O dinheiro é poderoso.

Fez-se certo silêncio.

– Como é, rapaz? Coragem! Desse jeito você não irá longe.

Senti-me ofendido.

– Estou com pressa. Vamos ao meu escritório. Conversaremos reservadamente – falei, aborrecido, enquanto subia os primeiros degraus da escada.

Entramos na sala. A secretária estava em seu trabalho de digitação. Sentei-me à mesa e coloquei a pasta no chão, ao lado da cadeira.

– Pronto, senhor, aqui está cópia da petição sobre sua demanda judicial contra o governo.

Ele não pareceu surpreso com a minha atitude.

O cliente levantou-se e saiu. Sequer se despediu da secretária que por tantas vezes o recebeu com gentileza e prestimosidade.

Eu Iria pegar a estrada, esburacada e perigosa.

***

A estrada era de mão dupla, cheia de depressões. Muitos buracos, alguns capazes de provocar terrível acidente. Pisei fundo o acelerador, sem me preocupar com o velocímetro, de funcionamento duvidoso. A anomalia técnica favorecia o excesso de velocidade.

Minha preocupação maior era com a audiência, cada vez mais próxima. Temia perder o horário e, consequentemente, o prazo processual que daria vitória à outra parte, nos moldes insinuados pelo senhor Martins, homem obstinado e de poucos escrúpulos.

O vento forte entrava pelas janelas abertas do velho Kadet e fazia um barulho danado. Dessa forma, não ouvia as fitas cassetes gravadas com músicas sertanejas, outra paixão depois de minha mulher, dos filhos e do Direito.

Havia percorrido cento e vinte quilômetros, quando o motor falhou por algumas vezes, provocando muita fumaça, até parar definitivamente.

Era o fim da viagem.

O tempo passava a uma velocidade assustadora. Cada dez minutos pareciam um, transcorridos em meio a angustiante espera. Nenhum carro se dispôs a atender-me. Se pegasse carona em caminhão, não chegaria a tempo.

Os ônibus tinham horário programado e pareciam estar distantes de passarem por ali. Cheguei, inclusive, a pensar em pegar carona em uma moto, mesmo que viajasse sem capacete, expondo-me ao perigo.

Nada acontecia em meu favor.

Em dado momento, o celular tocou. Atendi a chamada, preocupado com o atraso. Disse ao cliente que talvez não chegasse na hora aprazada. Pedi-lhe desculpas, admitindo perder a hora, a audiência, e, consequentemente, a causa tão exaustivamente estudada para defendê-la.

Consultei o relógio pela enésima vez. Faltavam quinze para as duas. A audiência estava para ser iniciada. Verifiquei a passagem do tempo por diversas oportunidades seguidas, até ver o ponteiro maior encobrir o número doze e o pequeno estacionar no número dois.

Era realmente o fim.

Maldisse a sorte.

Relembrei a proposta do senhor Martins quanto à perda de prazo processual. Não aceitei entrar naquele jogo sujo, por julgar-me probo. Agindo honestamente, via-me perder uma causa por encontrar-me ausente do Tribunal de Justiça, embora contra minha vontade.

Perguntei-me, revoltado: “a sorte que me abandonou neste dia infeliz de minha vida profissional estará ao lado do senhor Martins, em sua desonestidade?”.

Em meu desespero, questionava a Deus sobre a vitória da desonestidade e a derrota da verdade e da justiça.

Enquanto amargava o meu infortúnio, sob o sol do início de tarde, quente e desolador, atendi novamente o telefone que tocava insistentemente.

– Alô! – respondi, desalentado..

– Doutor? Alô, doutor Antônio?

A voz distante, vinda do outro lado da linha, tirou-me do estupor em que me encontrava.

– Sim? Quem fala?

– Doutor, o juiz não pôde comparecer ao julgamento. Avisou de última hora. A audiência foi cancelada e transferida para outra oportunidade.

Que sorte!

Chorei um choro entrecortado de soluços. Ajoelhei-me no chão escaldante, de mãos postas para o alto, em prece silenciosa de agradecimento. Disse contrito: obrigado, meu Deus!

Naquele instante, tive confirmada a certeza de que vale a pena ser honesto.