Juramento desfeito

"Parabéns pra você, nesta data querida…”, cantavam, animadamente, os convidados da festa de aniversário da jovenzinha de quinze anos, comemorados naquela ocasião.

O acontecimento ocorria nos amplos salões da Food´s House, conceituada casa de eventos sociais da cidade. Um excelente tecladista animava o embalo.

Os adolescentes transbordavam de alegria: dançavam, batiam palmas, saracoteavam abraçados, aos beijos, tomados de um frenesi incontrolável.

Os pais da garotada pareciam acostumados à cena; indiferentes, limitavam-se a acompanhar os gestos e as atitudes dos filhos.

A aniversariante chama-se Patrícia, a quem os familiares tratavam por Pat, abreviatura bem ao gosto dos americanos, com quem conviveria nos próximos dois anos, em intercâmbio cultural programado pela escola de inglês, idioma que dominava fluentemente.

Durante aquele período, Patrícia iria aprimorar os conhecimentos da língua, conhecer a cultura e os costumes de um país rico e desenvolvido.

Os pais de Pat já passavam dos trinta anos de idade; Noaldo comemorou o trigésimo quinto aniversário em novembro último e Marta completaria trinta e dois no próximo Natal. Conheceram-se muito jovens; ele, aos dezessete anos e ela, aos quinze. Casaram-se após rápido noivado, ocorrido ao final do segundo ano de namoro.

Patrícia nascera antes de o casal completar nove meses de casados. Para dissimular, diziam que o parto teria sido prematuro. Aos sete meses. Depois, veio o André, o último filho do casal.

A família vivia em harmonia e desfrutava a felicidade de um lar isento de maiores problemas, principalmente de ordem financeira.

Como funcionário de certa empresa multinacional, Noaldo gozava de grande prestígio na corporação. Recebia excelente salário como assistente da diretoria, cargo exercido com competência, e ainda desfrutava de certas regalias como a de ter o aluguel da casa e um automóvel último modelo às expensas da firma. Visitava os Estados Unidos uma vez por ano, aproveitando a oportunidade para consolidar os conhecimentos na área de informática, especialidade útil no seu dia-a-dia de trabalho.

Embora diplomada em psicologia, Marta jamais exerceu a profissão. Cuidava da administração da casa e acompanhava os estudos de Patrícia e André, sem pressioná-los por maior dedicação. Costumava dizer: “os filhos não devem ser policiados pelos pais”. Segundo ela, as “crianças” eram responsáveis e dariam conta de suas obrigações.

***

No final do primeiro ano de permanência nos Estados Unidos, Patrícia retornou para alguns dias de férias. Encontrou a família confortavelmente instalada. Noaldo cada vez mais se dedicava à empresa. Mantinha a rotina diária de sempre: de casa para o trabalho e do trabalho para casa; havia descuidado da aparência física, revelada pelo excesso de peso. O desconforto muscular era responsável por sua ojeriza à ginástica.

Já Marta, ao contrário de Noaldo, mostrava-se bem vistosa em uma silhueta moldada à custa de muita malhação na academia. Continuava sem uma atividade econômica, e, por isso, vivia à custa do marido.

Visitava as amigas, jovens senhoras como ela, sem afazeres fora do lar; ia ao cinema, aos shows de rock e gostava de assistir as partidas de tênis no principal clube social da cidade.

André, por sua vez, estava bem crescido; dedicava infindáveis horas à inseparável guitarra, da qual extraía acordes de músicas incompreensíveis, mal rimadas, de pouco ou nenhum valor artístico. Negligenciara os estudos por conta dessa mania nefasta que acomete jovens de sua idade, quase todos alienados, distanciados da realidade e despreocupados com o futuro.

Nos encontros com as amigas, Patrícia contou o seu dia-a-dia nos Estados Unidos. Falou da viagem a Nova Iorque, das visitas ao World Trade Center, destruído por Bin Laden, e ao Empire States Bulding, do alto do qual avistou grandes edifícios e contemplou o panorama da cidade, embora embaçado pela névoa decorrente da altitude.

Mencionou agradável passeio de barco pelos rios East e Hudson, oportunidade em que se maravilhou com a Estátua da Liberdade e a Ponte do Brooklyn. Disse, ainda, ser o país economicamente rico, culturalmente diversificado, religiosamente sóbrio, politicamente poderoso e esteticamente bonito.

E influente.

“O mundo todo copia ou adota as modas criadas na terra do Tio Sam. Pessoas do mundo inteiro, principalmente de países de pouca significação, pobres cultural e economicamente, muitos situados abaixo da linha do Equador, apreciam as inovações, imitam os costumes, adaptam as coreografias, estilo e práticas dos americanos; chegam a mesclar o próprio idioma com palavras grafadas em inglês, perto de adotarem uma nova linguagem – o portuglês, como é o caso do Brasil”. “Existe muita gente rica por lá, que realiza gastos extravagantes, inclusive com futilidades. As farras gastronômicas nos fast foods são responsáveis por grande número de obesos. É o país da liberdade, às vezes negada em costumeiras ações militares”.

Patrícia finalizou as observações sobre os Estados Unidos, num misto de admiração e desaprovação.

Não contou mais, por sentir inveja das amigas.

A brasileirinha voltou à terra de Tio Sam, depois de matar a saudade da família e dos amigos. Ficou satisfeita em contar suas experiências, o aprendizado, os dias passados naquele país localizado na América distante, diferente de outros situados em continente homônimo, ao Sul, onde a pobreza fez morada, a miséria abunda e a corrupção campeia.

Esqueceu-se, todavia, de falar sobre o preconceito racial em alguns estados. Ali os negros são tratados com indiferença, com certo desprezo, com o rigor das leis, para eles aplicadas com mais severidade.

A momentânea falta de memória da Patrícia teve uma motivação: ela começava a admirar o anfitrião; por isso, escondera dos amigos algumas verdades tão dolorosas.

Também não lhes contou, talvez por constrangimento, sobre a perda da própria virgindade, aos dezesseis anos, com um bostoniano de origem judia.

Dezesseis anos!

“Já um pouco adiantado da hora”, teriam dito pessoas libertinas, licenciosas e de moral decadente.

Aos pais, ela nada revelou.

Não o fez nem à Zoraia, sua velha amiga, deflorada aos quinze anos em uma festa Rap. Zoraia participara de um “bonde”, modalidade de dança em que as mocinhas sentam-se nos colos dos rapazes, às escuras, depois de guardarem suas peças íntimas em um lugar qualquer.

***

As coisas mudam, não apenas de lugar. Incertezas políticas, desacertos administrativos, conjuntura econômica adversa, mudança de tecnologia, de métodos, um sem-número de acontecimentos podem alterar o rumo das coisas e desvirtuar objetivos planejados.

Foi o que aconteceu à empregadora de Noaldo.

O país que servira de sede àquela multinacional abandonara uma gestão administrativa coerente, austera, responsável, com projetos destinados a alcançar resultados duradouros. Brevemente, contaria com novo governo, incerto, de tendência esquerdista, populista e de frágil sustentação política.

Temerosa, a empresa resolveu sair do país. Fechou as portas. Transferiu-se para outro lugar, uma nação mais organizada, melhor administrada, sem altos índices de incompetência da mão-de-obra operária, com tributação mais amena, menos extorsiva.

Noaldo foi despedido. Perdeu o salário pontual, as benesses do cargo, as regalias da função.

Algum tempo depois, começou a se dar conta de momentos difíceis e de futuro incerto. Havia esquecido de economizar. Investira apenas na educação dos filhos, ambos fora do mercado de trabalho. André ainda não terminara o curso e Patrícia suspendera os estudos depois de retornar dos Estados Unidos. Teria que cuidar da gravidez avançada e posteriormente da criança.

Noaldo não adquiriu a casa própria. Limitou-se aos prazeres da boa mesa, da requintada bebida, dos festejos fúteis, frívolos e de pouca duração. Julgava-se agraciado pela boa vida, supostamente infindável. Em conversas com as amigas, a esposa não perdia a oportunidade de narrar episódios de viagens inesquecíveis, notadamente internacionais.

Marta dizia não gostar de visitar museus e galerias de arte. Segundo ela, esses lugares mostram apenas velhos objetos, móveis antigos e peças carcomidas pelo tempo. Até a arquitetura dos prédios históricos e as ruínas de monumentos milenares não lhe agradavam.

Visitara Paris algumas vezes, porém nunca se animou em conhecer o Museu do Louvre, onde veria La Gioconda, de Leonardo da Vinci; o Museu d´Orsay, o mais belo da Europa; o Palácio de Versailles, ocupado pelos alemães em 1870, e que serviu de palco à solenidade de coroação de Guilherme da Prússia, como imperador da Alemanha.

Não lhe agradava nem mesmo os edifícios históricos, de rara beleza. Ela nunca assistiu um concerto na Opera, o maior teatro lírico do mundo. Gostava mais dos espetáculos no Moulin-Rouge e no Lido. Freqüentou lojas, bares e restaurantes no Champs Elysée; em uma dessas oportunidades, conheceu o Arco do Triunfo, onde foi fotografada exibindo uma réplica da Torre Eiffel em uma das mãos.

A Catedral de Notre-Dame chamou a atenção de Marta, ao avistar os três portais em estilo gótico; o do centro representa o Juízo Final, com a personificação dos vícios e das virtudes.

Foi conhecê-los.

Não poderia evitar.

Nem deveria.

Repetira viagens a Londres, Roma, Amsterdã e a muitas outras cidades européias, mas só falava às amigas dos bons restaurantes, dos desfiles de modas e dos shows de rock, feliz por ser admirada por seu porte delgado, talvez saindo em fotografias de alguma revista, embora anonimamente. Sempre citava a Praça Piccadilly Circus, em Londres, com a naturalidade de quem estava acostumada a freqüentar o local preferido pelos turistas do mundo inteiro.

***

Desempregado há meses, Noaldo viu as finanças escassearem, as dívidas crescerem, o plano de saúde vencer, o conforto diminuir, as insatisfações em casa tornarem-se mais freqüentes, ruidosas e insuportáveis.

Os filhos reclamavam da falta da roupa nova, de grife, dos raros passeios semanais aos shoppings e da freqüência aos cinemas. Não se adaptavam àquele padrão de vida, ao isolamento social, às renúncias de toda ordem. Isso os tornava inquietos, insatisfeitos, revoltados e até agressivos. Responsabilizavam o pai pela perda do status que ostentaram.

Marta não abria mão de certas comodidades. Estranhava a ausência do conforto negado pela conta bancária reduzida a cada final de mês. Não deixaria de freqüentar a academia de ginástica, por ser esta a responsável pelo corpo esbelto e pelas formas perfeitas, apesar do peso dos anos. Quase quarenta.

Nem parecia verdade!

Ela continuava bonita.

Linda e vaidosa.

Visitava o cabeleireiro a cada quinze dias e a manicura, semanalmente. As visitas às lojas foram reduzidas, mas não eliminadas. Recebia anúncios, cartas e prospectos de produtos anteriormente consumidos à larga. Ia às butiques com menor freqüência, desculpando-se junto às vendedoras pelas ausências, justificadas pelas viagens que dizia fazer.

Mentia dissimuladamente.

Noaldo tinha a vida infernizada pela mulher, que exigia o uso do cheque especial, ainda vigente, embora exibindo saldo vermelho, cor que ele detestava.

Marta temia voltar a morar na casa dos pais, na periferia da cidade. A visão daquelas casas velhas, desalinhadas, de ruas sujas, com ônibus apinhados de passageiros trajando roupas confeccionadas nas cooperativas de favelados, tudo lhe parecia um horror. “Nunca”! – costumava dizer, amedrontada.

O relacionamento do casal estava tumultuado.

Ninguém se entendia mais.

A casa desarrumada, sem empregada, tornara-se uma bagunça. E para complicar a vida conjugal, Marta negara a Noaldo a prática do sexo. “Você não me tocará mais, até resolver a situação”, repetia para o coitado, quando este a procurava para certas intimidades; e o dizia com acentuado grau de desprezo, de deboche, de rejeição.

A decisão da mulher foi radical.

Noaldo sentia-se humilhado.

Não esquecia os maus momentos em que falhara na “hora agá”, quando o cérebro, contagiado pelos pensamentos negativos, ocasionados pela situação financeira decadente, não emitiu sinais que estimulassem o órgão genital, despertando-o para o “combate”.

“Teria sido essa a razão pela qual Marta, ao comunicar sua decisão, esboçara aquele sorriso irônico?” – pensava ele, tristemente.

Sem emprego, Noaldo não teria dinheiro; sem dinheiro, continuaria na penúria; na penúria, não faria sexo com a mulher, que não mais dormia ao seu lado para evitar-lhe o contato. Temia ser acometido por algum mal físico, decorrente do estresse. Só lhe faltaria ser vitimado por acidente vascular cerebral e ficar inválido, a depender fisicamente de outras pessoas.

Financeiramente, não teria a quem recorrer.

A mulher não o ajudaria em nenhuma circunstância. Os filhos… Ah, os filhos! “São raros, hoje em dia, os que ajudam os pais em situações aflitivas”, concluiu o seu pensamento, após enxugar as lágrimas dos olhos insones.

***

Todos os dias, Noaldo andava pelas ruas da cidade à procura de emprego. Carregava uma pasta, cujo peso maior era o conteúdo do bom currículo, ali guardado à espera de oportuna recepção.

Numa dessas ocasiões, avistou Marta entrando em certo edifício. “Para onde iria?” – perguntou-se, perplexo.

Resolveu segui-la.

Temendo ser descoberto, escondeu-se por trás de transeuntes, colunas de prédios, carros, até chegar à porta por onde entrara a esposa. Surpreso, encontrou a mulher abraçada com um antigo colega de trabalho.

Eles não perceberam a presença de Noaldo.

Abraçados, entraram no elevador, aos beijos.

Noaldo não compreendeu o traiçoeiro gesto de Marta. Ela esquecera os bons momentos, os dias felizes vividos em família. Ele a amara intensamente. Foram felizes por muito tempo. A esposa esquecera a promessa feita no dia do casamento, no altar, diante de Deus. Não se lembrou de haver prometido honrá-lo na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza.

Marta desfez o juramento, quebrou o acordo, destruiu a família.

Tornou-se adúltera.