Gene maldito

O barulho ensurdecia. Os recém-nascidos naquela manhã de outono não paravam de chorar. O “berreiro” incomodava médicos e enfermeiras da Unidade Neonatal, já bastante estressados após exaustivo plantão.

Teriam que suportar.

Esse era o trabalho deles.

As mães descansavam nas enfermarias e as crianças no berçário da maternidade. Dois bebês estavam em incubadoras por terem nascido prematuramente, mas não inspiravam maiores cuidados. Do total de recém-nascidos, quatro eram do sexo masculino.

No dia seguinte, os pais vieram conhecer os filhos na hora da visita, cansados da viagem em incômodos transportes coletivos, oriundos da periferia da cidade. Dois pais não compareceram à visita. Seus filhos jamais os conheceriam, pois não havia como localizá-los. As próprias mães desconheciam os autores da paternidade.

Essa a razão.

Decorridos os dias de resguardo, as mães foram liberadas e saíram da maternidade acompanhadas dos maridos e de parentes. Avós, tios e primos vieram auxiliar no transporte dos novos membros da família.

Ficaram dois pequenos chorões, os últimos nascidos naquele sábado. As mães se recusaram a levá-los consigo, alegando extrema pobreza. Não tinham onde morar. Viviam nas ruas da cidade, debaixo de viadutos e marquises de prédios abandonados. O Estado cuidaria das crianças. “Talvez uma alma bondosa deseje adotá-las”, disseram à assistente social.

Aquelas mães moravam nas ruas desde a infância. Consumiam drogas, adquiridas com favores sexuais ou quando batiam a bolsa de um velho ou de uma senhora idosa.

Não se lembrariam dos filhos. Por que o fariam?

Agora, livres daquele “peso”, iriam curtir a vida: cheirar cola de sapateiro, fumar craque e maconha, beber cachaça e se prostituir.

Engravidar de novo?

Talvez.

Os garotos deixados na maternidade ficaram ali por algum tempo, depois foram transferidos para uma creche. Receberam os nomes de Francisco e Sebastião. Francisco, o menorzinho, possivelmente por ter sofrido no corpo as marcas de chagas doloridas em seus primeiros meses de vida. Sebastião foi o nome dado ao segundo, um pouco maior e mais forte. Ele resistiu às graves manifestações dos efeitos das drogas consumidas pela mãe desregrada.

Chamaram ao segundo, Sebastião, para tratá-lo por “Bastião”. Pensaram na influência do nome, no futuro. Quem sabe não se revelaria defensor dos fracos e oprimidos?

Não foram batizados em nenhuma igreja. Civilmente, um recebeu o sobrenome Silva e o outro Santos. Francisco dos Santos e Sebastião da Silva.

Quando as mães entraram na maternidade, não trouxeram documentos de identidade; desconheciam as famílias a que pertenciam; ignoravam se os próprios pais atendiam por nomes complementares aos de Maria e Isabel, João e José.

Hoje, nem se lembravam de suas fisionomias.

Assim seriam aqueles filhos, de quem jamais conheceriam o futuro. Se não fossem adotados por bondoso casal, e viessem, como elas, a morar nas ruas, ao relento, possivelmente iriam cheirar cola, fumar craque e, talvez, morrer anônimos, eliminados pela polícia ou por seus companheiros de infortúnio.

***

Um casal de vinte e seis anos viajava pela estrada que liga o sertão ao litoral baiano, a cento e vinte quilômetros por hora, em companhia do filho de três anos de idade.

Vinham das férias de quase trinta dias, passadas em praias lindas e aconchegantes. Comeram muito camarão e tomaram bastante água de coco. Também beberam cerveja, principalmente Carlos, engenheiro proprietário de pequena empresa de construção civil no estado de Pernambuco.

Foram férias maravilhosas.

Inesquecíveis.

Se as coisas continuassem como estavam, com as finanças bem equilibradas, voltariam no próximo ano.

Em certo trecho do percurso, esvaziou-se um pneu do carro. Carlos controlou o veículo com habilidade. Estacionou o Vectra à margem da estrada e iniciou a troca do pneu. A mulher nem desceu do automóvel. Ficara ali para abrigar-se do sol e porque a criança dormia inocentemente em cadeira especial.

De costas, Carlos não percebeu a aproximação de um elemento com uma escopeta calibre doze, e de seu companheiro armado com pistola automática.

Ana não imaginava o que acontecia lá fora. De repente, foi despertada pelo estampido de uma arma. O pneu já havia sido trocado. Os meliantes entraram no carro, cada um por uma porta e puseram o veículo em movimento.

O assaltante dirigia em alta velocidade.

Nada diziam para Ana que, atônita, morria de medo. Não sabia se o marido perdera a vida ao ser atingido pelo tiro, pois apenas o vira caído quando os bandidos entraram sem nada dizer.

Em curva bastante fechada, a roda dianteira direita saltou, pois ficara com parte dos parafusos por apertar. O veículo capotou diversas vezes. Como resultado, morreram no acidente os dois facínoras e o garotinho.

Ana não saiu ilesa. Ficou bastante ferida: duas costelas quebradas, a clavícula fraturada e profundo corte na cabeça. Transportada para um hospital em Petrolina, foi operada e ali permaneceu até receber alta hospitalar.

Os assaltantes foram identificados como traficantes de maconha, produzida abundantemente na região pernambucana.

***

Ana sentia-se sozinha e desamparada. Sofria intensamente a perda do marido e do filho. Com o dinheiro do seguro, tentou refazer a vida na companhia de um senhor de quarenta e cinco anos, conhecido pela Internet. Nos bate-papos com Rubens – assim se chamava o namorado cibernético de Ana –, ela dissera que após o nascimento do filho, morto no acidente, fizera ligadura das trompas; o parto fora de alto risco e o falecido marido não quis submetê-la a nenhum outro.

Rubens disse ser estéril. Divorciado, pretendia encontrar uma companheira para o restante da vida ainda jovem.

Casados, viviam felizes em casa espaçosa e confortável: cinco quartos, salas de visita, de jantar e grande área verde. Ali cultivavam lindos jardins. Agradável piscina lembrava as águas azuis do mar mediterrâneo, onde está localizada a Ilha de Capri, na Itália. O casal passou a lua de mel ali, como fizera Tibério em seu exílio dourado no terceiro século de nossa era.

Certa vez, Rubens convidou Ana para visitar um orfanato para o qual contribuíam financeiramente. Por ocasião da visita, conheceram alguns garotos deixados ali por mães que ignoravam o pai biológico dos filhos.

No abrigo existiam meninos e meninas com idades entre dois meses a dezessete anos, a maioria de cor parda; alguns eram negros e poucos brancos residiam no orfanato.

Rubens e Ana conheceram Francisco e Sebastião, ou Bastião, como era chamado pelas “tias”. Gostaram do que viram. O ambiente era simples e bem cuidado, porém revelava carência material e afetiva.

Aos administradores faltava tempo para distribuírem o carinho necessário; também não lhes sobravam recursos financeiros para oferecerem conforto e educação adequados às crianças do orfanato.

O casal resolveu adotar Francisco; Francisco dos Santos, o chorãozinho, naquela época com quatro anos, pequenino, de cabelos encaracolados, rosto comprido e magro.

Rubens informou-se sobre o temperamento do menino. Gostaria de conhecê-lo melhor. Apesar da pouca idade, Francisco recebeu restrições a algumas facetas de sua personalidade. Coisas que o casal relevou. “Boa educação e vida confortável, em ambiente familiar respeitável, resolveriam a questão” – pensaram eles.

Francisco passou a adicionar ao nome as palavras Pereira Brasil, tiradas das famílias de Rubens e de Ana. A alteração no registro civil de nascimento mudou o nome de Francisco dos Santos para Francisco dos Santos Pereira Brasil, sobrenomes conceituados nos estados de Pernambuco e do Paraná, onde as famílias de Rubens e de Ana tiveram origem.

Antônio e Maria, um casal amigo dos Pereira Brasil, foram influenciados por eles e meses depois adotaram o Bastião, que a partir daí passou a chamar-se Sebastião da Silva Medeiros Andrade.

Os nomes dos novos adotados perdiam, em extensão, apenas para os Orleans e Bragança, da família imperial brasileira.

A vida dos Pereira Brasil e dos Medeiros Andrade seguia curso normal. Rubens, Ana e Francisco; Antônio, Maria, Ana Lúcia – a filha biológica – e Bastião formavam duas lindas famílias. Os pais trabalhavam enquanto os filhos estudavam. Todos frequentavam os melhores meios sociais, ajudavam a comunidade, iam à Igreja – eram Batistas –, viajavam nas férias e enfrentavam dissabores normais a toda família.

***

O tempo passou celeremente. Dias, meses e anos foram acrescentados às vidas dos garotos e às de seus pais, numa sucessão de acontecimentos felizes. Em certo momento, porém, chegou à casa dos Pereira Brasil uma equipe de policiais, desejosa de saber se Francisco residia ali, pois pretendiam interrogá-lo.

Rubens identificou-se como pai e quis saber o motivo da investigação. Acusaram o jovem de participar de gangue envolvida com tráfico de drogas e roubos de automóveis.

Rubens desmoronou.

Não entendia como o filho, bem criado, com boa educação recebida na família e na escola cometesse esses desatinos.

O garoto foi intimado a prestar esclarecimentos na Delegacia do Menor. Saiu de casa escoltado pela polícia.

O advogado não pôde livrar Francisco do castigo. Ele foi recolhido a uma unidade correcional até completar a maioridade. A condenação arruinou a vida do rapaz. Os anos passados no presídio juvenil serviram para aprimorar sua índole criminosa. Vinte e quatro meses depois, foi novamente preso, pelas mesmas razões, e ainda, por falsificação. Tornara-se exímio falsário, responsável por alterar documentos. Julgado e condenado, passou a cumprir pena de reclusão de doze anos em penitenciária estadual.

Enquanto Francisco cumpria pena no presídio estadual, Sebastião estudava Direito. Os pais não esqueceram os velhos amigos e os convidaram para a festa de formatura. Rubens e Ana receberam convite para a colação de grau, marcada para o mês de dezembro.

Com vinte e cinco anos, Sebastião terminou o curso de Direito em faculdade particular do interior de São Paulo, lugar escolhido pela família de Antônio para morar quatro anos depois da adoção.

Segundo contaram aos amigos Rubens e Ana, Bastião não dera trabalho até tornar-se adulto, apesar de ter manifestado excessiva vaidade: gostava de roupas de grife, de bons restaurantes e de dirigir carros de luxo; suas excentricidades custaram caro à família, magoada com ele por deixá-la endividada.

***

Trinta e oito anos separaram o dia em que Francisco e Sebastião foram adotados, da morte dos pais adotivos.

Sebastião, bacharel em direito, prestara concurso para juiz e exercia a atividade em importante cidade do estado de São Paulo. Casado e pai de dois filhos, desfrutava vida confortável.

Muito tempo depois, Sebastião aposentou-se e ingressou na política, por intermédio de amigos influentes. A influência levou-o ao Judiciário Superior.

Tornou-se Ministro de uma das Cortes de Justiça.

No Poder Judiciário, imaginou-se protegido pelo corporativismo da instituição e esperava ver encobertos seus atos criminosos. Associou-se ao crime, ligou-se a traficantes de drogas, a autoridades desonestas e a políticos com mandatos facilitados pelo dinheiro ilícito.

Virou bandido.

Sebastião concedia sentenças favoráveis a advogados especializados em fraudar o erário e a condenar grandes empresas a astronômicas indenizações financeiras. Alvarás de soltura, concessão de liminares e de habeas-corpus para criminosos eram expedidos por Sebastião, o Bastião que levou seus primeiros protetores a imaginar-lhe um grande futuro.

Francisco continuava preso. Pagava pelos crimes cometidos, enquanto as coisas seguiam às “mil maravilhas” para Sebastião, acobertado pela impunidade e pela influência dos poderosos.

Os amigos não se viam há anos.

Tempos depois, a “casa” caiu para Sebastião. De repente, as autoridades foram surpreendidas por uma crise de honestidade, e levaram Sebastião a julgamento, condenando-o por seus muitos delitos.

Em determinada ocasião, no pátio de exposição ao sol, no presídio, Francisco avistou alguém de cabelos grisalhos, novato na instituição carcerária. Surpreendeu-se ao encontrar ali o amigo de infância com quem compartilhara o orfanato.

Na penitenciária, Sebastião revelou-se líder. Ocupava cela individual por deferência do diretor, seu conhecido quando representava a justiça no estado de São Paulo e em Brasília. Diversas vezes aquele dirigente frequentou o gabinete do ex-ministro para discutir assuntos “sigilosos”. Esses encontros valeram a liberdade para muita gente.

Por influência do amigo de infância e de orfanato, Francisco ocupava destacada posição no esquema de dentro do presídio. Como falsificador de inconteste perícia, falsificava alvarás de soltura e licenças especiais para determinados prisioneiros deixarem o estabelecimento penal. Doutor Tião os redigia com base em seu saber jurídico, agora, de notória serventia criminosa.

Fora da penitenciária, os bandidos praticavam crimes de alta compensação financeira. Presos em novos atos delituosos, jamais denunciavam a forma como obtiveram a liberdade.

A polícia não foi capaz de abortar nenhuma operação comandada de dentro da penitenciária, mas conseguiu por fim ao esquema com base em informações de um delator, posteriormente assassinado por vingança.

No silêncio da prisão, o ex-magistrado teve a idéia de mandar executar antigos colegas de crimes, por usufruírem a liberdade graças ao beneplácito da Justiça.

Sebastião sentia-se injustiçado.

Policiais corruptos permitiram a saída de presos para executarem a vingança arquitetada por Sebastião. Figuras da alta sociedade, de grandes corporações empresariais, renomados advogados, expoentes da política, do judiciário e da polícia foram assassinados em série. Um após outro recebia a sentença ao pé-do-ouvido, antes de morrer.

Um castigo, para doutor Tião, justo e merecido.