O dentista

O Ginásio Santa Filomena era um educandário particular, muito bem localizado no centro da cidade. Dotado de instalações amplas e modernas, dois grandes pátios recreativos, salas de aulas espaçosas e confortáveis, fazia a alegria dos alunos, o gosto dos pais e a cobiça dos proprietários.

Cercado por altos muros, tinha as paredes internas bem pintadas, em contraste com as pichações externas onde se liam frases desconexas e indecorosas.

As agressões ao visual identificavam o autor como pessoa desajustada e rebelde.

O número de alunos era pequeno. Cerca de oitocentos garotos, todos do sexo masculino, filhos de pais bem remunerados financeiramente.

As salas eram bem mobiliadas e iluminadas com lâmpadas fluorescentes, assemelhadas à luz do dia. A excelente iluminação oferecia conforto aos estudantes, sem prejudicá-los nem excitá-los com cores ou luminosidade inadequadas.

A escola contratava os melhores professores. Conhecidos mestres das principais disciplinas trajavam jalecos brancos bem engomados, por trás dos quais se viam vistosas gravatas coloridas. Alguns portavam pequeno bastão, acentuando-lhes o ar professoral e ilustre.

Os alunos, à moda da época, trajavam uniformes cáquis em que a camisa se destacava pela tonalidade mais clara. Os sapatos eram pretos e estavam sempre bem lustrados.

A diretoria do colégio controlava os gastos com rigor. Tornara-se extremamente econômica. Cobrava tudo que os alunos consumiam ou iriam utilizar por ocasião do aprendizado, segundo uma lista apresentada no início do ano letivo. Excetuava-se o papel higiênico, mesmo assim já cogitado de ser incluído na relação de material escolar.

Os pais resistiram.

Terminado o ensino fundamental e o segundo grau concluído, os colegas se dispersavam.

Dificilmente se encontravam.

Vez ou outra se avistavam nos shoppings, nos cinemas frequentados nos finais de semana, nas lanchonetes e danceterias; nunca nas igrejas.

Tiago e Lucas foram colegas de sala no Santa Filomena, de onde saíram para fazer faculdade. Algum tempo depois, graduaram-se.

Tornaram-se doutores.

Certa feita, encontraram-se em um Congresso de ortopedia. Ambos eram médicos e exerciam a profissão em localidades distintas.

– Lucas?

– Tiago! É você?

Apertaram as mãos; abraçaram-se; riram a não se conterem. Tiago afastou-se um pouco de Lucas, à distância dos braços, e disse:

– Cara, você não mudou. Como vai? Está solteiro? Quantos filhos tem?

E conversaram mais e mais. Perguntaram por outros colegas, pelas antigas namoradas, falaram sobre alguns professores, principalmente do que lecionara História das Américas.

Riram ao lembrarem de que o velho mestre consumira todo um semestre ensinando sobre o Homem Pré-colombiano; isso lhe valera esse apelido, posto pela turma irreverente e zombeteira.

Recordaram de certo bedel do Santa Filomena, extremamente exigente e sobre quem circulava história no mínimo hilária. Era conhecido na cidade como um Dom Juan. Quando passava uma mulher, dizia para o amigo ao lado: “essa aí, eu já, ó...!”.

Riram a vontade. As mentiras de Francisco, suas conquistas amorosas contadas sem reservas a quem quisesse ouvi-lo eram conhecidas de toda a cidade. Chico, por diversas vezes comparecera à justiça para responder a processos. Fora surrado outras tantas e até recebera um tiro de um marido enciumado.

Nem tudo o que Francisco dizia era mera tagarelice. Algumas mulheres, mais aventureiras, teriam concedido “favores” ao Chico.

– Certa ocasião – falava Lucas, aos risos –, um dentista com consultório na cidade, casado com belíssima morena, alta, de pernas longas e bem torneadas, tratava os dentes de Francisco. Sentado na cadeira alta, com o encosto reclinado, tendo o doutor por sobre seu corpo, ouvia as perguntas do injuriado marido: “Você está transando com minha mulher?” – repetiu Lucas o que dissera o dentista naquela ocasião.

– Nãaaao! – gritou Lucas, como fizera Chico, a cada dente extraído, sem anestesia.

– Na praça da cidade – complementou Tiago –, quando Chico ia se refrescar do calor ou descansar a cabeça dos muitos aborrecimentos do dia no colégio, e alguém lhe perguntava, ao passar uma mulher: “está comendo?”, ele respondia:

-papa!

– A boca desdentada e murcha não mais sorria. A lembrança era dolorosa e Francisco preferia não falar mais de suas conquistas amorosas – concluiu Lucas, quase sem conter o riso, no que foi imitado pelo amigo.