Intrépido viajante

A Blazer dormira no estacionamento da pousada, devidamente abastecida de combustível. A bagagem fora acomodada na noite anterior para evitar perda de tempo.

O Sol iluminava a estrada. De tão forte, dava a impressão de que figuras disformes dançavam no asfalto escaldante. E lá ia eu. Ouvia músicas melodiosas e cheias de poesia.

A visão emocional naqueles momentos de enlevo musical expressava um estado d´alma alternado por momentos alegres e tristes. Confortavam-me as mensagens de amor, as descrições imagéticas de encontros felizes e românticos; entristeciam-me as frases construídas de magoas e de sofrimento.

Percorridos mais de duzentos quilômetros, parei para almoçar. Um posto de abastecimento de combustível apoiava uma churrascaria, borracheiro e loja de conveniência. Contei seis grandes carretas estacionadas no pátio, duas delas com as cabines inclinadas: os motoristas examinavam alguma dificuldade mecânica. Cinco automóveis estavam parados ao lado de um restaurante com mesas distribuídas na área coberta.

Desci e examinei os pneus; como estavam em ordem, tranquei as portas do carro e fui sentar a uma mesa forrada por uma toalha xadrez nas cores vermelha e branca. Almocei uma galinha caipira ao molho pardo, que nós nordestinos chamamos de “cabidela”.

Que delícia aquela penosa!

Igualmente deliciosa deveria estar a galinha d´angola – capote ou guiné como também a conhece-mos –, torrada e misturada à farofa. Estava sendo saboreada por uma família de quatro pessoas, sentadas em torno de uma mesa vizinha.

Eu não tinha pressa aonde chegar.

Depois do almoço, saí do carro à procura de boa sombra para armar a rede trazida na bagagem. Tinha por teto as copas verdes de dois pés de mulungu decorados com flores vermelhas e o céu azul-claro e sem nuvens. Depois de ler alguns trechos de um romance de John Grisham, adormeci para acordar, horas depois, descansado e satisfeito da vida que levava.

Há dias estava na estrada. Gastava os poucos recursos amealhados durante os anos trabalhados como professor, agora aposentado. Era solteiro e sem filhos. A vida errante custava-me pouco; os maiores gastos eram com gasolina e as refeições feitas sem muita exigência.

O carro já dava sinais de fadiga. Era um modelo antigo, dos primeiros anos de lançamento. Certo dia, o “cansaço” aumentou e a máquina, embora de ferro, pifou.

Encontrava-me a boa distância de onde poderia contratar um mecânico. O dia findava-se. Avistei uma casa no alto da colina e fui até lá pedir pousada por aquela noite.

Conversei bastante com seu Pedro, meu anfitrião. Ele era casado há quarenta anos com dona Elvira e tinha um único filho com ela, Francisco, a quem dera os melhores exemplos de honestidade. Ensinou ao garoto o respeito às leis, às autoridades constituídas, o amor à família, ao próximo, a dedicação ao trabalho, a consideração à vida. Disse-me que eram muitas as dificuldades no campo, principalmente quanto ao crédito agrícola: escasso e caro.

– Não acredito no Governo, não, seu moço! É tudo enganação. Na hora de pedir o voto…

...

Às vinte horas, seu Pedro perguntou se eu queria dormir. Para ele estava bastante tarde, pois às cinco da manhã iria ordenhar as vacas e cuidar do roçado, uma plantação de milho consorciada com feijão.

Concordei e deitei-me em uma rede armada na sala.

Aguardava o sono chegar, quando vi um vulto extenso, fino e roliço que passeava pelos caibros do telhado. Fiquei apreensivo. Minutos depois, ouvi chiados se repetirem durante a noite insone. No dia seguinte, seu Pedro contou-me:

– Crio uma cobra preta para pegar ratos. Ela costuma andar à noite pelo telhado. Ontem pegou uns cinco!

Tenho pavor de ratos.

As ratazanas, da família dos murídeos, são responsáveis pela destruição de grandes quantidades de alimentos e pela transmissão de doenças como a peste bubônica. Por três vezes na vida, quase morri do coração ao enfrentá-los.

Quando criança, fui “roubar” biscoito no guarda-louças de minha avó; retirei a gaveta do móvel e enfiei o braço para alcançar o objetivo; olhava para os lados a todo instante. Temia ser flagrado na empreitada; sem ver, apalpei um rato que tivera a idéia de comer o biscoito antes de mim.

Em minhas viagens, certa vez, cansado de dirigir o carro, pernoitei em uma hospedaria. Mandaram-me dormir em um sótão de telhado baixo, povoado por ratos que passaram a noite em desabalada carreira, de um punho ao outro da rede.

De outra feita, o lençol com que me cobria serviu de pista para os nojentos roedores irem e virem. Percorriam-me da cabeça aos pés.

Quase morri, naquele dia.

Em todas as ocasiões, o chiado que emitiam provocaram-me grande terror, tão intenso quanto o de senti-los por sobre o corpo, embora coberto por lençol fino, quase transparente.

Despedi-me da família que me hospedou naquela noite insólita.

Agradeci-lhe a amabilidade característica do homem simples do campo. Aguardei a passagem do próximo transporte de passageiros debaixo da sobra de uma árvore frondosa.

No ônibus em que viajei a procura de mecânico para consertar o carro, conheci uma linda garota. Uma beleza sem retoque, naturalmente encantadora. Não resisti ao seu charme e passei a olhá-la insistentemente. Seu sorriso era lindo. Lembrava a expressão facial que imortalizou Mona Lisa – La Gioconda –, de Leonardo Da Vinci.

O olhar e o sorriso de Mona Lisa eram tão expressivos quanto os da jovem passageira.

O ônibus parava aqui e ali para embarcar e despedir passageiros. Chegou a minha vez de descer. Saltei nos arredores da cidade onde contrataria o mecânico.

A Blazer ficou pronta depois de horas de exaustivo trabalho. Os serviços foram concluídos no final da tarde. Por ser quase noite, resolvi continuar a viagem nas primeiras horas da manhã.

No dia seguinte, parei num posto de gasolina. Entrei na lojinha de conveniência para comprar jornal. Para minha surpresa, vi a jovem passageira do ônibus. Dos fundos da loja, olhou e sorriu para mim com aquela expressão facial de Mona Lisa, tímida, linda, inigualável. Em seguida, saiu pela porta dos fundos e não mais a vi.

Desapareceu misteriosamente.

Retornei à viagem solitária.

Ao final da tarde, lembrei de não ter lido o jornal. Ao abri-lo no segundo caderno, li estarrecido: Terrível acidente vitimou cinco passageiros do ônibus… A folha estampava a fotografia da linda mocinha como uma das vítimas do desastre.

Passei alguns dias deprimido, em face do acidente que vitimou a linda garota. Seu sorriso tímido ainda não me saiu da lembrança.

***

Meu novo veículo chamou a atenção de marginais. Havia recém adquirido uma camioneta Ford Ranger, em substituição à velha Blazer. Fui surpreendido quando descansava à sombra de uma árvore frondosa. Acabara de almoçar um cabrito a "primo berro", por eu mesmo preparado. Asseio-o nas brasas de um original fogareiro de pedras.

Eram dois, os bandidos.

Acercaram-se de mim, escondidos por trás da Ranger. Anunciaram o assalto, cada um com armas cujos gatilhos não resistiriam muito à pressão dos dedos indicadores de suas mãos direitas, firmes e resolutas.

Nenhum deles se preocupou em esconder o rosto. Pareciam certos de não serem reconhecidos por motoristas de lugares distantes.

A certeza da impunidade favoreceu a imprudência dos bandidos e também me salvou a vida.

Dialoguei, tentei convencê-los a desistirem da investida, sem resultado. Levaram meu carro juntamente com a bagagem. Deixaram a rede e o pequeno rádio de pilha em que ouvia músicas e notícias. E, algumas vezes, mensagens inspirativas do Evangelho.

Eu era um multívago com raras crises de espiritualidade.

Pela estrada, passava um camponês das redondezas. Sem compreender porque, recebeu de bom grado a rede e o rádio que lhe oferecera. Desejei ficar livre dos objetos para encetar implacável perseguição aos assaltantes.

Aguardei até que um motorista corajoso ofereceu-me ajuda. Contei-lhe ter sido assaltado e que tivera a caminhonete roubada.

O homem era destemido.

Um sertanejo de boa compleição que, ao contrário de mim, portava um revolver calibre 38, bastante usado.

Meu novo amigo imprimiu grande velocidade ao veículo. O asfalto estava razoavelmente bom naquele trecho da estrada; aliara-se à nossa vontade de prender os marginais.

Da parte de baixo de uma elevação, iniciada à nossa frente, vimos a Ranger lá no alto, bem distante. Rubens – esse era o nome do meu companheiro – aumentou a velocidade da Chevrolet S-10, cabine dupla. Seguimos velozes como o vento. Quando chegamos à chapada, o carro que perseguíamos estava à mesma distância do início da “caçada”.

Os assaltantes pisavam fundo o acelerador.

Foram momentos de intensa perseguição.

Percorríamos a distância quase irresponsavelmente, sem medo, mas com receio de não lograrmos êxito em nosso intento de prender os bandidos.

Os buracos da estrada fizeram aquilo de que não fomos capazes: parar os meliantes. A certa altura, avistamos a Ranger atravessada, com a parte dianteira dentro de uma vala e a roda do lado direito quebrada; o material de liga-leve não resistiu ao impacto do choque e partiu-se. Rachou ao meio.

Os bandidos fugiram.

Rubens ainda disparou alguns tiros na direção dos fugitivos, mas não os alcançou.

No dia seguinte, após consertar o veículo, fui à delegacia de polícia registrar um Boletim de Ocorrência. Não pretendia deixar os assaltantes impunes.

Foi grande a minha surpresa.

Na delegacia, avistei um dos bandidos sentado por trás de uma mesa, no centro da qual se lia em uma placa: “Delegado”. O homem vestia calças jeans e exibia óculos escuros no rosto, embora o ambiente refletisse pouca luminosidade.

Girei o corpo nos calcanhares e retornei ao estacionamento onde deixara a Ranger.

Precisava urgentemente proteger a vida.

Saí em disparada.

Quase abalroei uma viatura com o logotipo da prefeitura municipal estampado em ambas as portas. O veículo transportava o prefeito em visita ao amigo delegado.