Visita ao Paraíso

Naquele dia, acordei muito cedo. O sol nem despontara e eu já havia deixado a cama quentinha e aconchegante.

Iria viajar.

Tomei um rápido banho, troquei de roupas e saí. Lá fora estava frio. Consultei o relógio e constatei que faltavam trinta minutos para as cinco horas.

Com dificuldade para enxergar, baixei o foco de luz da lanterna e iluminei o caminho por onde deveria passar.

Costumo acordar cedo para viajar. Gosto de desfrutar a natureza nas primeiras horas da manhã. Encantam-me o verde das árvores, a relva das colinas com suas tonalidades claras e escuras, o serpear dos rios, as gigantescas pedras no alto dos montes, tais quais obras esculpidas por grandes artistas. Sinto prazer no aroma das flores; aprecio os animais soltos nas campinas e nos terreiros das casas: bois, cavalos, ovelhas, galinhas… pastando, galopando ou ciscando para fortalecerem os músculos ou saciarem a fome.

Com a luz da lanterna a alumiar os meus passos, fui até ao carro estacionado em um galpão próximo. Coloquei as malas no chão, abri a porta da Blazer, entrei e acionei o dispositivo do porta-bagagem. Desci, arrumei as malas sob a débil luz do compartimento, fechei o bagageiro e em seguida sentei ao volante.

Liguei o motor, que roncou estridentemente, perturbando o silêncio da madrugada. Esperei a máquina aquecer e o óleo lubrificar os pistões. Enquanto isso, desci novamente do carro, desta vez para revisar os pneus. Bati com o punho fechado em cada um deles.

Estavam em ordem.

Tudo pronto para o início da viagem.

Iria sozinho, como de costume.

Sol já iluminava as colinas e começava a secar o orvalho das folhas. Liguei o CD-player e segui estrada afora. Ouvia melodias cantadas por bons intérpretes e tocadas por renomados músicos internacionais. Ray Conniff, Richard Clayderman, Severino Araújo, Tom Jobim, Caetano Veloso e Chico Buarque, são os meus favoritos. Também costumo ouvir Nelson Gonçalves e Luiz Gonzaga, o primeiro por gostar de músicas românticas e o segundo por me fazer recordar a terra natal.

Onde quer que surja uma novidade, não perco o ensejo: paro o carro à margem da estrada e desço para verificar, fazer perguntas, conversar, conhecer, aprender. Ao avistar um grupo de pessoas, estaciono o veículo e apresento-me como “andarilho sobre quatro rodas”. Converso sobre suas vidas, seus hábitos, suas esperanças e frustrações.

Acho interessante esse meu modo de viver.

Estava a caminho de uma pequena cidade, chamada Paraíso. Eram duas horas da tarde. Embora o tempo estivesse quente, desliguei o ar condicionado para poupar combustível.

Alguns minutos depois, parei no acostamento e desci a ribanceira para refrescar-me nas águas cristalinas de pequeno lago, um belíssimo “cartão postal” sem nenhuma semelhança com outro já conhecido. Lindo gramado emoldurava a lagoa, na qual seis ou oito marrecos nadavam em fila, puxados por orgulhosa mãe, tão linda quanto seus filhotes. As árvores eram bem distribuídas e pareciam plantadas por experiente paisagista.

Voltei ao carro para pegar os apetrechos de pesca. Sentei em uma pedra, tirei os sapatos, pus os pés dentro da água e comecei a pescar. A paz reinante impediu-me de continuar contemplando aquele “paraíso”, que talvez tenha inspirado o nome da cidade próxima.

Adormeci sentado na pedra.

Acordei momentos depois, com um puxão na linha, tão forte que dobrou a vara de pescar ao meio. Havia fisgado um Tucunaré de… bem, não citarei o tamanho e o peso do peixe para não ser confundido com pescadores inescrupulosos.

Caia a noite.

Retornei à viagem depois de recolher meus pertences e acomodá-los no bagageiro do carro. Não esqueci o Tucunaré que seria saboreado quando chegasse à cidade.

Procurei uma hospedaria, onde fui acolhido cordialmente. O proprietário, senhor de quase sessenta anos, bem apessoado, embora um pouco obeso, impôs uma condição para preparar o peixe: dividi-lo comigo, pois nunca vira um Tucunaré daquele tamanho, tão bonito e certamente delicioso.

Aceitei a proposta por considerá-la razoável.

Tomei um reconfortante banho quente e depois desci para o restaurante do hotel. Comi o peixe na companhia do hoteleiro, que me serviu excelente taça de vinho. Subi as escadarias da pousada e fui ao quarto

Deitei-me para descansar.

Depois, iria conhecer a cidade.

***

O céu estava limpo. Naquele instante, nada ameaçava a agradável caminhada que fazia. Um vento ameno soprava do Sul, refrescando a noite silenciosa e acolhedora.

Vi ruas limpas, depósitos de lixo com as tampas fechadas, calçadas bem revestidas, sem buracos ou empecilho para o transeunte.

A iluminação pública era abundante, com postes de cimento do alto dos quais se viam grandes refletores a clarear os passeios, o asfalto e os gramados das praças belamente ajardinadas. Os fios elétricos passavam subterraneamente por sob os pisos sem poluírem a visão.

Os letreiros luminosos serviam para instruir, ao contrário de revelarem conteúdo apelativo e de baixo nível moral.

Os veículos trafegavam pelas ruas sem ameaçarem os pedestres, que andavam ordeiramente, cedendo a vez aos carros, motos e bicicletas quando os sinais não lhes acenavam com travessia segura.

Os policiais exibiam fardamentos bem cuidados; andavam em duplas, bem equipados com rádios comunicadores; cumprimentavam os cidadãos respeitosamente.

Estive na praça principal. Lá, grande canteiro de flores complementava a beleza do que viram meus olhos. Três homens conversavam sentados em dois banquinhos, quando deles me aproximei.

– Boa noite, senhores!

– Boa, noite! – responderam, uníssonos.

– Sente-se, senhor – disse o mais velho, depois de apontar um lugar ao seu lado.

Sentei em um banco de granito, com encosto para as costas.

– Bela cidade, esta – falei para início de conversa.

– Como é o seu nome, senhor? – perguntou o vizinho do lado direito.

– Maia. Josias Maia. Muito prazer! – respondi cordialmente.

– Cícero, Antonio e eu, Manoel – finalizou este, apontando cada um com o indicador da mão direita.

Manoel antecipou-se aos demais e falou:

– Paraíso é uma pequena cidade. Sua população é de oitenta mil habitantes. O prefeito está em seu terceiro mandato. Entre um intervalo e outro, foi vereador. O nosso orçamento é participativo, com a comunidade tendo acesso ao planejamento. A população sugere obras, apóia ou discorda de ideias. No final das discussões, e depois de o projeto ser analisado com bastante cuidado, segue para votação na Câmara de Vereadores. Quando aprovado, cada munícipe recebe uma cópia para acompanhar a execução orçamentária.

Continuou:

– Nossos vereadores recebem remuneração justa. Os funcionários são admitidos exclusivamente por concurso e em número suficiente para atender às necessidades administrativas. As escolas são públicas, de excelente padrão, remunera bem os professores, que trabalham em período integral e dedicação exclusiva. O sistema de saúde é público e de boa qualidade. O município garante a segurança do cidadão. Desconhecemos o que seja desemprego; o índice de ocupação nas diversas atividades econômicas é tão grande quanto o de alfabetização…

Ainda falando:

– A justiça, embora morosa, pouco nos afeta. O número de homicídios, roubos, assaltos, estupros… é tão insignificante que parece inexistente. Desconhece-mos casos de estelionato, seqüestros…

– É um verdadeiro “Paraíso” – interrompi, sem atentar para minha observação, capaz de ser entendida como ironia.

– Acredita no que lhe digo? – perguntou Manoel.

– Como ocorre esse milagre? – indaguei, admirado.

– Ausência de corrupção, meu amigo. Somos honestos! O dinheiro repassado pelo Estado, embora pouco, não é repartido com deputados que elaboram emendas orçamentárias. Somado às receitas locais de impostos, é aplicado com critério, com sabedoria, sem desperdícios. Com honestidade. É esse o segredo.

De repente, acordei com o barulho da campainha, acionada pelo hoteleiro que me chamava para o café da manhã.

Tudo não passara de um sonho.

Uma belíssima fantasia.

Uma realidade improvável.

Uma utopia.

Que pena!