A SOMBRA DO AVIÃO
A SOMBRA DO AVIÃO.
Conto fantasia
Valdomiro Pelo Mundo, nome inventado por ele mesmo,assim como inventou também a sua história e a sua naturalidade.
Se ele tinha parente, ninguém conhecia. Inventou o seu nome, o nome da mãe, do pai e vez por outra, no meio de uma conversa, contando causos, citava o nome de um irmão ou primo que ele inventava na hora.
Contava episódios emocionantes de brigas, tiroteios, historias de amor ou de revoluções, tristes ou divertidas.
Era o primeiro sem segundo para animar uma conversa, no armazém ou na barbearia e onde houvesse uma reunião de desocupados em volta de uma garrafa de cachaça, lá estava ele, atraindo todas as atenções e fazendo jus à uma boa talagada da branquinha.
Bebia moderadamente, mas, dizia conhecer 4273 marcas de cachaça. Gabava o sabor e o aroma de algumas dezenas, citava nomes e regiões que ninguém jamais ouvira falar.
Quando sentia alguma dúvida no ar, não perdoava: “Vocês precisa deixar de ser inguinorante. Com um mundão desse tamanho e vocês não conhecem nada”. E emendava uma história com outra,.
De repente, no meio de um tiroteio com o bando de Antonio Silvino, o sanfoneiro puxou o fole e ele saiu dançando com a moça mais bonita do forró.
A tal moça era filha do prefeito de Londres. Depois de dançarem a noite inteira, fugiu com ela na garupa, de um cavalo emprestado por um compadre seu, de nome Napoleão Bonaparte. O dito Napoleão era interventor da Grécia. Ta claro que vocês nunca ouviram falar. Essa tal de Grécia é uma cidade muita da esquisita, com um povinho besta e de fala arrevesada., mas, não existe terra melhor pra cultivar cacau.
Pois bem. E continuava contando causos, até dar sono ou acabar a cachaça.
Morava sozinho num sítio pequeno, não muito distante do centro, onde se concentrava todo o comércio, atividade econômica e burocrática. Um modesto arruado, com um grupo escolar há muito desativado o armazém a barbearia e no fim da rua, o posto policial.
Um cabo e um solado. Era todo o destacamento.
Valdomiro plantava feijão, milho, criava galinha, e cultivava uma pequena horta de verduras, que garantia uns trocados aos domingos na feira.
Ovos frango e outras miudezas do sítio, vendia ou trocava por farinha, fumo, sal e querosene. Às vezes uma garrafa de cachaça, para espantar a solidão.
Quando acabava a feira, ficava por ali, falando com um, com outro... Tomava uma cerveja que alguém sempre oferecia, só pelo prazer da companhia daquele homem de tantas “sabenças”, como era considerado. Depois dava uma chegada até a barbearia.
Raramente fazia a barba ou cortava o cabelo. Ia só prosear um pouco, era só chegar, e o ambiente ficava animado.
-Valdomiro, conta aquela! Aquela do relógio...
Não gostava de repetir histórias, era o que dizia, mas, gostava e repetia com prazer, criando novos lances e detalhes sensacionais.
Mesmo quem já conhecia, ficava atento, vibrando com as peripécias do nosso herói.
Pois é... Foi num dia de sábado. Acordei cedo, cuidei da criação, depois eu tomei um café com tapioca... Fiquei por ali bestando, olhando uma coisa e outra... O sol já estava bem no cocuruto do morro, e a sombra do coqueiro apontava direitinho para uma sapucaia, dividindo o terreiro bem no meio, sinal que já era oito horas e trinta e cinco minutos.
Daí eu fui conferir se o relógio estava certo. Estava. Nem um minuto de diferença. Era um relógio barato da marca Grão Duque, mas, trabalhava direitinho. Eu até gostava dele e usava só como enfeite, mas, não precisava para saber as horas. Daí eu fiquei pensando em negociar na feira do rolo. Eu estava precisando de um galo bom promode melhorar a raça da criação.
Cheguei na feira, já passava um pouco das nove e meia. Peguei meu reloginho e fiquei com ele na mão esperando uma oferta, e ao mesmo tempo, procurava um galo bom pra trocar.
Não demorou muito, e apareceu um sujeitinho muito do janota, perguntando se eu queria trocar o meu relógio, por um radinho de pilha japonês, que pegava as rádios dos estrangeiros, e até dos americanos. - É pouco. –Só se o senhor me der este anel de São Jorge, que eu sou muito devoto.
Fizemos a troca. Depois troquei o radinho por uma bicicleta. A bicicleta, mais o anel, por uma porca prenha. A porca eu troquei por uma sanfona de oito baixos, mas só a porca, os bacuris que ainda iam nascer não entravam no negócio. O direito aos bacuris, que eu calculei uns oito troquei por uma espingarda e um cachorro. O cachorro por uma pata, mas, com a condição e entregar os machos da primeira ninhada. E fui negociando, negociando... Que acabei pegando o meu reloginho de volta. E quando eu voltei para a casa, ainda tinha o relógio, a pata, e um caminhãozinho Chevrolet Cadete.
Essa era apenas uma das inúmeras histórias de Valdomiro, pelo mundo que ele jurava conhecer.
Ninguém entendia nem ele explicava como conseguia falar de lugares distantes, países da Europa ou da Ásia, sem nunca e saído daquele lugar É bem verdade que misturava Europa com América do Norte e do Sul.
Circulava pelo leste europeu, misturando histórias, e acontecimentos de lá, com histórias e personagens, daqui e de lá.
Notícias do mundo com causos de questões de terra ou querelas políticas.
Citava nomes e lugares, mas, nunca atinava direito quem era quem. Contava um caso que havia acontecido em Novaioeque, quando presenciou uma peleja de três dias e três noites, entre Zé Limeira e Osama Bim Ladem, que depois de perder feio, saiu humilhado e jurando vingança.
Limeira ainda tinha muito fôlego, e cantou mais quatro horas de martelo agalopado, e em língua de gringo, com um tal de Tonibler.
O cabra era tinhoso, mas, Zé Limeira é Zé Limeira.
Embolava lugares, épocas, pessoas, passagens da bíblia com o Almanaque do Capivarol.
Pouquíssimas pessoas da região haviam estudado além do grupo escolar. Jornal? Só aparecia, quando vinha embrulhando mercadoria ou lá mesmo no balcão esperando o mesmo destino.
-O povo não era muito apreciador de papel de letras.
Havia um rádio de pilha na barbearia, que quando tinha pilha era a maior sensação, e televisão, só mesmo nas histórias de Valdomiro, de corpo presente ninguém conhecia.
Ninguém entendia, nem procurava entender, não explicava e ninguém pedia explicação.
Valdomiro morava numa casinha modesta, sem eletricidade, não ouvia rádio, nem lia jornal. Mal sabia ler, mas, era o primeiro a tomar conhecimento dos eventos políticos, esportivas, da moda, e as marchinhas carnavalescas do Rio de Janeiro. Naquele fim de mundo, os habitantes conviviam em perfeita harmonia com os mistérios, entidades da mata ou dos rios, histórias de assombração, ou mula sem cabeça. Nos causos de pescaria ou caça, inventados por Valdomiro,
Era comum personagens do mundo das artes ou da política, ministros de estado se revelarem exímios violeiros, cantadores ou justiceiros, cuja coragem e valentia não eram de se botar defeito.
Até hoje se comenta na barbearia, o causo em que o senador Petrônio Portela, sustentou um tiroteio de quatro horas com as tropas de Manuel Bandeira, que tentaram invadir a Bahia, para depor o governador e nomear um interventor de nome Caetano Veloso.
...Morreu tanta gente, que os urubus só comeram os graduados, de tenente pra cima.
Os temas eram de acordo com o seu universo, mesmos que os protagonistas pertencessem a outro tempo ou país. Eles existiam ou existiram um dia. E foi num causo de briga por questões de terra, que Roberto Carlos saiu do mato, com uma Parabelum em cada mão, e tum, e tum.e tum... Botou a cabroeira pra correr, batendo com as alpercatas na bunda. Atirando sem parar, e gritando. É uma brasa! Mora?
O absurdo das histórias eram o que mais encantava aos ouvintes. Verdadeiras ou não, era o que menos importava.
Quando Perivaldo de Corá voltou do Rio de Janeiro, veio cheio das prosopopéias.
Saiu daqui ainda menino, levado por um tio, que apenas por conhecer o Rio de Janeiro, já era considerado a pessoa mais importante da família. E na opinião de todos, em matéria de sabedoria, só perdia mesmo era para Valdomiro Pelo Mundo.
Este sim sabia coisas de espantar, falava até umas palavras em língua de estrangeiro, dos americanos e dos Estadusunidos. Iéssis, maifrendis, mercibocu, e outras bem mais complicadas, devem ser latim.
E vem que apareceu Perivaldo di Corá, contando umas histórias bestas acontecidas no Rio de Janeiro.
Dona Coralina, coitada, mandou o filho com o tio para o Rio de Janeiro, na esperança do garoto freqüentar a escola, e aprender uma profissão. O povo até ria das historinhas bestas, que ele contava. Besta mesmo! Não tinha nada de emocionante, nem uma peleja de repentistas, ninguém importante, não tinha mulher fugindo na calada da noite, nem ao menos um tiroteio pra animar. Nada! Se aprendeu alguma coisa, deixou por lá. Onde já e viu um homem daquele tamanho usando calça curta, e um sapatinho de pano? O mundo está perdido...
E como se não bastasse: Com a maior deseducação do mundo, resolveu botar questão numa história que Valdomiro estava contando no armazém. E logo na melhor parte. Bem na hora que Chico Buarque de Holanda, estava esquentando com meia dúzia de bofetes a cara de um tal de Maique Taissom, por este ter desrespeitado uma dama muito distinta de nome Leidedai. Este caso ocorreu no cabaré de Romilda, em Rongue Congue. Daí que Perivaldo se intrometeu.
- Quando foi que você esteve em Hong Kong? Valdomiro não percebeu a maldade da pergunta. –
Foi no mês passado. Lá tem umas mulheres de olhinhos pequenos, mas, muito bonitinhas.
-Mas, como é que você viaja pra tão longe, e volta tão rápido?
-Você não passa nem uma semana sem aparecer por aqui...- Como é que você faz?
Aí que Valdomiro percebeu Perivaldo di Corá, estava duvidando da sua história.
--Eu viajo de avião, sua besta. Como é que você acha que alguém pode ir e voltar tão depressa?
O espanto foi geral. Ninguém lembrava de nenhuma história em que Valdomiro viajava de avião. Perivaldo insistia.
Onde é que você pega esse avião? Nunca ouvi falar de algum aeroporto por aqui
-Não ouviu, por que não tem, e se meu nome é Valdomiro Pelo Mundo, é porque eu conheço e viajo pelo mundo... E já que você quer saber, eu vou contar.
Ninguém arredava o pé, na certeza de que, sairia dali uma história como nunca se havia contado.
-Pois bem. Eu nunca tinha viajado de avião, e nem sabia como era por dentro. Também nunca havia pensado em viajar.
-E como é por dentro?
Perivaldo não se conformava com a segurança de Valdomiro.
Percebeu que ninguém duvidava que aquela história fosse verdadeira.
Pois bem. O avião por dentro, e mais ou menos parecido com o ônibus, só que é mais comprido. Tem duas fileiras de bancos, de três em três, e as janelas ficam fechadas o tempo todo. Tem também umas moças muito bonitinhas, andando pra lá e pra cá, e trazendo de vez em quando, umas comidinhas muito da desenxabida...
Perivaldo também nunca havia viajado de avião. Conhecia de ver no cinema, e de ouvir falar. mas, a descrição de Valdomiro batia.
Naquele fim de mundo, não existia cinema, nem televisão.. Luz elétrica era um sonho tão remoto, que nem constava no repertório das promessas políticas.
Pois bem. Eu estava roçando uma fileira de feijão, debaixo de um sol tão forte, que quando eu cuspia no chão, o cuspe virava fumacinha. Quando eu olhei para cima, promode calcular as horas, vi aquele avião enorme, todo prateado e vindo em minha direção. Quando ele passou, foi bem por cima da minha cabeça, entre mim e o sol.
Era meio dia em ponto.
Foi naquela hora, que a sombra do avião passou certinho onde eu estava, quando eu pisquei o olho, já estava dentro do avião.
Nem senti medo.
Mesmo assim, fiquei preocupado, porque eu não sabia para onde eu estava indo, nem sabia como voltar. Daí eu fiquei lá dentro assuntando, e ouvindo a conversa das pessoas. E o danado do avião nem sacudia mais, ia sereninho. Quando eu olhei pela janela, só vi foi água.
Lá embaixo estava o mar. Eu nem sabia que era tão grande.
Eu não estava com medo, porque achei que era um sonho, também não me preocupei em acordar.
Eu estava era gostando. Eu via todo mundo, mas, ninguém me via.
Daí eu fiquei à vontade, Procurei um cantinho lá no fundo do avião, e tirei um cochilo.
Quando acordei, ainda estava lá. O avião já estava no chão, o pessoal foi saindo, e eu fui junto,.mas, como eu não conhecia aquele lugar, fiquei ali por perto, pensando como é que eu ia fazer pra voltar. Era fácil. Se ele vai, ele volta, e eu vou junto. Era só tomar cuidado, para não entrar no avião errado.
Com o tempo fui aprendendo qual era o avião que voltava pelo mesmo caminho, e quando ele passava por aqui, eu pulava fora. Desde então eu tenho viajado pelo mundo inteiro, sem carregar malas, nem pagar passagem.
Perivaldo não acreditou em uma só palavra, mas, teve que reconhecer que a história era danada de boa. Ninguém entre os presentes demonstrou a menor sombra de dúvida e não seria ele o único.
Engoliu a história e uma boa talagada de cachaça pra ajeitar as idéias. Valdomiro também tomou uma e se despediu. Até pra semana pessoal. Amanhã eu vou pra França. ETA lugar pra ter mulher bonita!
Perivaldo não se conformava. Queria tirar aquela história à limpo.
No dia seguinte ficou de tocaia. Já era quase meio dia. Viu quando Valdomiro saiu de casa meio enfatiotado e ficou em pé no meio do terreiro.
Não entendia e não queria acreditar no que estava acontecendo.
O avião se aproximava bem na direção de Valdomiro, entre ele e o sol. Do seu posto de observação, dava para perceber a sombra do avião seguindo junto, até passar bem em cima de Valdomiro. O avião foi se afastando, e o homem desapareceu junto.
Voltou para casa meio baratinado das idéias.
Não acreditava, mas, não conseguia explicar.
Naquela semana, Valdomiro não apareceu no armazém nem na barbearia. Na outra também não, nem na outra nem na outra...
O caso só ficou esclarecido, dois meses depois, quando Perivaldo encontrou um jornal velho, em cima do balcão do armazém, pronto para embrulhar alguma coisa. Leu espantado a notícia, que dizia:
Entre as vítimas do avião acidentado, que se dirigia ao aeroporto Charles Degaule, apenas um corpo não foi identificado. Um homem modestamente vestido. Trazia no bolso, um pacote de fumo, e um pequeno canivete. Usava um relógio barato da marca Grão Duque.
São Beto Ferreira.