Desacerto oneroso


Desde que me conheço por gente, tomei a insipidez como inimiga mortal. A trivialidade me cansa, o marasmo nunca me atraiu... Eu gosto mesmo é do perigo, da instabilidade, das grandes emoções. Que sentido teria minha vida caso eu não me envolvesse em situações tensas e potencialmente arriscadas? Foi por isso que, durante incontáveis anos, rodei pelos quatro cantos do globo, à procura de toda a sorte de conflitos. Fui muito questionada quanto aos meus atos, mas não devo satisfações a ninguém. Exceto a você, leitor. Prazer, meu nome é Vandris.
 
Para situá-lo melhor, acho que devo começar pelo meu passado. Você acreditaria se eu dissesse ter mais de cinco mil anos? Por favor, não ria. É a pura verdade! Sou fruto da união entre um deus – há muito esquecido pelos homens – e uma mortal, num daqueles típicos casos de adultério celestial. Digo que meu pai foi esquecido porque eu, como boa filha rebelde, enfrentei-o em favor do meu livre arbítrio, acabando por tirá-lo do trono dos deuses e exilá-lo, fazendo sua memória entre os mortais extinguir-se. Aliás, muitos poucos dos humanos, hoje em dia, têm conhecimento da existência dos deuses como eles realmente são.
 
Minha herança genética me daria, geralmente, apenas uma parcela dos atributos divinos, mas, por alguma razão, nasci com uma aptidão anormal ao Poder, o que me faz ser comparável a qualquer deus “puro”. Na minha juventude, vivi ao lado de minha mãe, uma simplória meretriz, com a qual eu mantinha uma relação estável. Foi justamente quando ela morreu, violentada por um cliente, é que descobri a força que guardava dentro de mim. A energia liberada por mim chamou a atenção dos deuses – incluindo meu pai. Foi ali, aos 17 anos, que começaram minhas desavenças com os senhores do mundo.
 
Há princípio, não me dediquei a estudar para aprimorar meus talentos. Mas a necessidade mostrou a face logo; foi quando conheci Lorghan, o único deus com quem já mantive relações amigáveis. Meu mestre, companheiro e amigo; dêem a ele os créditos pelo fortalecimento do meu caráter e da minha força. Ele, inclusive, me ajudou na conspiração que derrubou meu pai, fato pelo qual pagou com o banimento da Terra dos Deuses e promessas de morte. Passados vários séculos do ocorrido, Lorghan ainda vivia isolado, apesar de as perseguições terem cessado há muito.
 
Foi depois dessa grande reviravolta que minha vida de errante e baderneira, de fato, começou. Me intrometi, durante um longo período, nos conflitos etéreos, que acabavam, direta ou indiretamente, influindo na vida na Terra. Mas, devo confessar, meu real interesse estava nos mortais e em suas guerras terrenas. Seus assuntos me fascinavam – e ainda fascinam – de tal forma, que eu, muitas vezes, deixava de lado as ladainhas dos deuses e me focava exclusivamente na vida dos humanos.
 
Mesmo podendo valer-me de feitiços inimagináveis – aos quais somente um deus poderia ter acesso –, devo admitir que os mortais produziram uma quantia considerável de magos brilhantes, capazes de feitos extraordinários. Uma das razões pelas quais fui duramente repreendida foi o fato de eu compartilhar alguns conhecimentos com eles, me envolvendo em suas maquinações e ajudando a promover os conflitos que fomentavam.
 
Acho que você deve se perguntar qual a razão de eu me referir aos humanos como “mortais”. Sim, eu sou uma semideusa, mas, acho que já deixei explícito, é como se fosse inteiramente divina. Não parece arrogância: é. Nunca fui do tipo humilde e sei muito bem de minhas capacidades.
 
Mesmo com toda essa minha indisposição para a burocracia dos deuses, tive a impressão de que o tempo estava prestes a virar. Podia sentir isso, de algum modo... O posicionamento das estrelas, também, indicava mudanças, como havia percebido naquela época. Fazia mais de dois séculos que não dava as caras no Grande Domínio, como é chamada a terra dos meus adoráveis amigos, e eles não vieram mais me procurar, desde então... Muito estranho.
 
Do alto do Arco do Triunfo, em Paris, eu observava o movimento noturno, que tanto me agrada naquela cidade. Do nada, percebi uma presença, no mínimo, estranha, próxima a mim.
 
– Tirando uma folga para relaxar?
 
Me virei, surpresa. Quem mais estava à minha frente, senão o atual Regente dos patetas divinos?
 
– O que faz aqui, Pansir? – disse eu.
 
– Já estava com saudades, sabia? Acho que os seus feitos não são muito difíceis de notar, não, Vandris? Aliás, não entendo como você quer se comparar a nós, se insiste em usar esse nome mortal...
 
– Jamais me comparei a vocês; sou superior, como você bem sabe. Diga logo o que quer, antes que eu perca a paciência!
 
– Pelo visto, acordou nervosa hoje! – riu ele. – Venho lhe dar um aviso... Infelizmente, coube a mim essa tarefa indigna; mas, sabe como é, o Regente deve sempre tomar uma atitude quando...
 
– Não enrole!
 
O som de minha voz era alto, mas eu sabia que ninguém mais podia nos ouvir. Ele não pareceu se intimidar com a minha agressividade.
 
– Se você estivesse no Grande Domínio, seria punida severamente por se dirigir a mim desta for...
 
– ... Mas, já que não estou, dê logo o seu recadinho.
 
Ele me encarou, lívido.
 
– A Corte Suprema exige seu retorno imediato ao Grande Domínio.
 
Não pude deixar de rir.
 
Exige? Desde quando vocês têm o poder de me exigir algo?!
 
– Sua insolente! – vociferou ele, perdendo a paciência. – Você não faz idéia do que está para acontecer! Não estamos lhe dando escolha alguma: ou você comparece, ou arcará com as devidas punições!
 
– Fico me perguntando quem, dentre vocês, vai ter a coragem de tentar me forçar a comparecer...
 
– Por que você acha que eu estou aqui?
 
Olhei para ele, incrédula. Aquele patife farsista parecia estar querendo medir forças comigo. Ele falou:
 
– Não pense que, por ser filha de Molfren, pode desafiar um deus como eu, sua criaturinha impura e desaforada!
 
Se estivesse num dos meus maus dias, já teria pulado no pescoço dele.
 
– Você certamente irá pagar caro por todos estes séculos de insolência quando chegarmos. Está na hora de se sujeitar às Regras Primordiais, e ninguém melhor do que eu, um ser antigo e muito mais poderoso do que você, para fazê-la obedecer.
 
– Por que você não fala menos e faz mais?
 
O que aconteceu a seguir foi tão rápido, que fica complicado de descrever aqui. Ele tentou paralisar o tempo e me capturar com um encanto retentor, mas acabou liberando uma forma de energia incolor e muito intensa, que, graças a mim, não levou a cidade aos ares. Que ser inconseqüente, aquele! Tinha de me livrar daquele encosto, antes que ele acabasse fazendo alguma bobagem.
 
Pansir tentou investir contra mim de novo, mas eu era mais ágil do que ele, e tinha algo que ele desconhecia: cautela. Foi graças a isso que consegui evitar mais um ataque, enquanto sentia sua raiva aumentar. Por que ele não trouxera reforços? Todos sabiam muito bem que eu era uma ameaça; decerto, o orgulho o impedira de fazê-lo.
 
Impedi mais um golpe, que por pouco não destruiu o país, tal a sua força. Eu estava gastando muita energia para poupar os humanos de uma calamidade, e já começava a me cansar daquela brincadeirinha estúpida!
 
– Pansir, desista! Eu não vou com você!
 
Os olhos dele estavam injetados de fúria. Era do conhecimento geral que o Regente dos Deuses, por vezes, perdia o controle. Se pudesse imaginar o que aconteceria a seguir, teria preferido mandar até ali outro, que não ele.
 
Numa última tentativa de me atingir, ele fez menção de atacar novamente, mas eu agi primeiro: manipulei parte da minha força e a lancei contra ele. Acontece que eu... Hum, errei na dose, por assim dizer; não medi com precisão a potência do golpe que eu aplicaria. Pansir estava demasiado absorto em tentar me destruir, e acabou não conseguindo se defender: a torrente de energia liberada por mim foi tão intensa, que o consumiu num instante.
 
Fiquei pasma ao ver uma luz emanar do que fora o corpo do deus, expandindo-se pelo ar até desaparecer na noite.
 
 Demorei um tempo para me dar conta do que fizera. O Regente do Grande Domínio fora destruído – destruído por mim, e esse fato não passaria despercebido. Aliás, os demais deuses provavelmente já teriam se dado conta naquele momento, e eu teria que decidir, em poucos instantes, que atitude tomar. Sabia bem quais seriam as conseqüências dos meus atos; a questão era: estaria preparada para o que viria a seguir?
 
Eu poderia fugir, é claro; todavia, nunca fui do tipo covarde. Não iria me esconder. Acabaria, de um modo ou de outro, nos portões da terra dos deuses. O que encontraria lá? Não sabia, mas estava convencida de que muitos perigos me aguardavam. Antes, porém, tinha algo a fazer, que talvez me consumisse algum tempo. Mas logo, prometi a mim mesma, daria àquele bando de imbecis o desprazer da minha presença.