Dupla despedida


Se me deixasse levar pelas lembranças trágicas do passado e me ativesse aos infortúnios ocorridos na era anterior, eu certamente não teria disposição para continuar exercendo meu ofício. Como, entretanto, procuro deixar de lado quaisquer joguinhos sentimentais, tratei de transpor as barreiras astrais, afastando-me dos Portões Celestes, e descer à Terra.
 
Era uma noite de verão em Roma, o calor parcialmente atenuado pela chuva frugal. Um cenário perfeito para um sono tranqüilo após um dia de trabalho árduo. Para meu alvo, a labuta fora intensa, mas ainda não pudera desfrutar do merecido descanso. Sentira que eu estava próximo, mas não tentou fugir. Ao contrário: aguardava por minha chegada.
 
– Vocês, anjos, sempre tão pontuais...
 
A voz de Beatriz expressava sua fadiga. Não ousou me encarar, à princípio. Senti uma mistura amarga de desgosto e ódio dentro de mim. Mas, como já disse, prefiro ficar longe de sentimentalismos; eu tinha uma tarefa e pretendia realizá-la.
 
– Por que não fugiu ao pressentir minha presença? – perguntei.
 
– De que adiantaria?
 
– Você tem tantos contatos nos Planos Infernais... Poderia ter pedido a um de seus amigos para lhe conceder abrigo, quem sabe?
 
Ela ressentiu-se por meu sarcasmo. A energia da mágoa vibrava pelas paredes.
 
– É justo por causa de favores demoníacos que você está aqui neste momento, Kellor. Por que não torna as coisas mais fáceis fazendo aquilo à que veio, afinal?
 
– Como se fosse algo fácil.
 
– Você não esqueceu.
 
Era uma afirmação, e, de fato, verdadeira. Ao menos, parcialmente.
 
– Logo você, um dos favoritos dos antigos deuses... Como pode um ser tão elevado rebaixar-se a guardar consigo sentimentos humanos?
 
– Não fale do que não sabe, bruxa. E esteja ciente de que o fato de eu não ter esquecido não significa que terei condolência. Você me conhece o suficiente para saber que misericórdia não faz meu estilo.
 
Beatriz finalmente dirigiu os olhos a mim. Grandes, amendoados, de um tom exótico de castanho... Quase havia me esquecido da beleza daquela mulher. Ela falou:b
 
– Por que escolheram justamente você?
 
– Meu mestre é um tanto sádico, pode-se imaginar.
 
– Você jamais vai se acostumar à mudança, pelo jeito.
 
Mais uma afirmação. Desta vez, completamente verdadeira.
 
– Como poderia? – indaguei. – Se você tivesse sequer a mínima noção do quanto...
 
– Posso ser humana, mas percebo coisas às quais os entes superiores muitas vezes ficam alheios. Há grandes riscos de uma nova investida dos demônios; você deve ter ouvido rumores.
 
– Seus informantes andaram vazando mais informações, então. Nada surpreendente. No entanto, você não presenciará aquilo que está por vir. Não foi por acaso que não escapou do nosso encontro. Eles a obrigaram a permanecer aqui, pelo que me disseram. Tiraram-lhe quase toda a essência de energia concedida. Afinal, você não só violou os termos angelicais, mas também os demoníacos. Não se mexe com possessão de espíritos maiores, Beatriz. Você, mais do que todos, deveria saber disso.
 
– Eu fui bem sucedida, não fui?
 
– Digamos que não totalmente. Com a libertação daqueles espíritos, conseguiu romper uma das barreiras astrais, a fim de ter acesso a conhecimentos que sempre foram proibidos a mortais. Obviamente, os demônios não imaginavam que sua pretensão fosse tão elevada, e acabaram por repensar a ajuda que lhe haviam dado para o feitiço antes que você se apossasse dos Encantos Ancestrais. Aprisionar aqueles malditos espíritos não foi fácil, acredite: uma centúria de anjos foi aniquilada antes que pudéssemos trancá-los de volta no Vácuo.
 
Ela limitou-se a um meio sorriso.
 
– Qual foi o objetivo disso, Beatriz? Sacrificar-se à troco de nada? Você sabia quais seriam as conseqüências das suas ações. Por que fez isso?
 
– Está com pena de mim, por acaso?
 
– Não nego que sim. Mas lhe garanto que é mais raiva do que pena.
 
Ela encarou-me, a vibração de amargura agora se misturando à da zombaria.

Escondia uma informação e sabia que eu a desejava.

 
– Não consigo crer que alguém tão inteligente quanto você tenha cometido tamanha insensatez de forma despropositada... Vai me contar qual o motivo antes que eu termine minha missão?
 
– Se eu fosse fazer o que me pede, você teria de adiar a punição para outra hora... O que parece não estar em seus planos.
 
– Definitivamente, não.
 
– Então, meu caro... – Ela moveu-se alguns passos, afastando-se de mim e espichando os braços, um dos quais apontou para o baú aos pés da cama. – Receio que não tenhamos mais nada a conversar...
 
– Eu é que deveria dizer isso.
 
– Estou quase sempre adiantada, você sabe.
 
Lutei contra um sentimento enterrado em minhas entranhas celestiais, algo que julgava perdido no tempo e na memória, mas que agora ressurgia numa avalanche violenta. Mas eu era mais forte do que aquilo. A racionalidade deveria permanecer acima de tudo.
 
– Não se demore mais, Kellor. Só saiba que não fiz nada visando prejudicá-lo, apesar das aparências. Espero que algum dia você me perd...
 
Sem mais me demorar, estiquei o braço direito, e de minha mão surgiram fachos de luz incandescente, que reduziram o corpo de Beatriz a nada. Caí com um estrépito sobre a cama, tentando dar-me conta do que tinha acabado de fazer. Terminara, enfim.
 
Não sei quanto tempo fiquei ali parado, observando o vazio daquele quarto tão abarrotado de móveis e objetos, sentindo o perfume da mulher que eu há pouco executara... A mulher que por anos eu amara, e que agora tinha sua vida tomada pelas mãos do antigo amante, aquele o qual ela traíra anos antes. Que trágica ironia. Algo que certamente apeteceria ao meu mestre.
 
Quando a lucidez voltou à minha mente, a primeira coisa que fiz foi levantar-me e olhar ao redor. Meus olhos caíram diretamente sobre o baú aos pés da cama. Uma peça rústica, porém elegante, que, pelo visto, havia sido lustrada pouco antes. Desfiz num piscar de olhos os encantamentos que a protegiam e a abri.
 
Um pesado volume de imediato saltou ao meu colo, me pegando desprevenido. Na capa do livro, a caligrafia de Beatriz encontrava-se clara, o azul das letras ofuscando o branco do couro da encadernação.
 
Um último presente para aquele que tanto amei, na esperança de que eu possa, afinal, ser perdoada.
 
Não precisei me dar ao trabalho de folhear aquelas velhas folhas amareladas, pois, ao abrir o livro, fui levado diretamente a uma determinada página. 1323.

 
Um número poderoso, considerando-se que a soma de cada unidade resultava em... 9. Numerologia mística concreta, e não apenas superstição barata. Pus-me a ler as palavras, que não foram escritas por Beatriz. Alguns raros humanos podiam compreender aquela linguagem, mas jamais conseguiriam escrever uma letra sequer nela. O conteúdo a princípio não mostrava nada relevante ou desconhecido por mim, até que, ao final da página, esbarrei num trecho, destacado dos demais e completamente alheio às outras frases:
 
(...) Por intermédio de um dos Grandes Entes Espirituais, transcrevo estas palavras a cada um dos diários de nosso clã, antes que o tempo se esvaia por completo. A iminência de uma nova mudança é concreta e cada um de nós deve se preparar para tal. Visando a nosso propósito maior, foi ofertado sangue mortal em pagamento, o qual não teria sido derramado caso não fosse estritamente necessário.
 
Finalmente, haverá vingança. Finalmente, a tão esperada justiça. A Escolhida, ciente do papel crucial a ser desempenhado por si, prepara-se para dar a vida por nossa causa. O tempo chegou. Tanto anjos quanto demônios se destroem em suas guerras, ao mesmo tempo em que ignoram a fatalidade que está por vir. Deixem que riam. Deixem que continuem a se dilacerar. A fúria daqueles que dormem está prestes a eclodir por todo o multiverso; o...
 
Parei de ler ali, pois não havia necessidade de continuar. Provavelmente, eu era o único ente superior a tomar conhecimento de algo que passara despercebido pelos olhos dos imortais. Não precisei prosseguir com a leitura para saber que os tomos dos Encantos Ancestrais tinham, sim, sido roubados e, de algum modo, substituídos para que passassem a falsa impressão de que ainda permaneciam imaculados. Relacionando esse fato às bruxas, só pude concluir uma coisa: elas planejavam o retorno dos antigos deuses à existência, após o Banimento da era anterior.
 
O impacto daquela revelação foi cruel. Os segundos arrastavam-se como dias enquanto eu tentava colocar a cabeça no lugar. Ao me recuperar do choque, levantei-me, ainda meio tonto. Então, agarrei o livro e parti do apartamento para nunca mais voltar.
 
Beatriz, de alguma forma, foi a peça-chave para que o plano das bruxas se encaminhasse ao final, e nenhum de nós percebeu aquilo. Quando tivesse tempo, eu estudaria aquelas páginas com mais atenção, para que pudesse esclarecer melhor o que estava por acontecer. Agora, contudo, não era o momento apropriado. Estava ciente de minha parte na queda dos deuses, quando relutei em participar da guerra entre eles e o Vingador, o anjo que se tornara tão poderoso, que desafiou e destronou os deuses, trancafiando-os num canto desconhecido do multiverso. Eu não só me recusara a apoiá-los, mas passara a servir ao Vingador após a colossal derrota.
 
Assim que os deuses retornassem de seu aprisionamento, minha vida correria risco. Poderia tentar impedir que aquele colapso realmente se concretizasse, mas como? Não sabia o que iria fazer a seguir... Mas de algo eu tinha certeza. Era hora de dar adeus à minha antiga vida. Teria de elucidar os fatos, reunir energia e apoio, para, assim, enfrentar meu destino de frente, assumindo o papel de guerreiro que há milênios eu vinha recusando.