Fig: Dorian Gray - Ben Barnes


OSMOSIS
 
Dalva Agne Lynch
 
 
 
 
Depois de meses sem que aparecesse um único trabalho, aquele homem alto lhe bateu à porta do estúdio, trazendo o filho de cinco anos pela mão. Um retrato! Bom, melhor do que ver as contas não pagas se empilhando na mesa da cozinha.
 
Começou o trabalho no dia seguinte. Os traços suaves do rosto do menino o encantaram, com aqueles enormes olhos escuros e as bochechas rosadas. No fim da sessão, contudo, o rosado tinha se desvanecido. "É melhor parar por hoje. Ele está cansado." O pai se retirou com o menino e ele foi lavar seus pincéis.
 
Na segunda sessão, as cores não haviam retornado à face do menino, mas ele já as havia eternizado na tela. Com pinceladas rápidas, esboçou-lhe o talhe esbelto, as pernas finas e longas. Depois que eles se foram, o homem carregando o exausto menino  no colo, ele, com a febre da criação ainda queimando, terminou o quadro de memória. Lavou os pincéis e sentou-se, admirando a vitalidade da figura.
 
O homem alto não voltou para buscar o retrato. Depois de esperar algumas semanas, com as contas a atormentá-lo, resolveu telefonar. "Não, o senhor não está em casa. Foi ao funeral." Funeral? Que funeral? "Ah, você não sabe. Seu filho faleceu..."
 
O homem voltou dois dias depois. Pagou-lhe com lágrimas nos olhos e se foi, levando o retrato, e ele saiu para pagar as contas acumuladas.
 
Foi apenas no mês seguinte que lhe apareceu outro trabalho. Uma bela senhora, já madura, bateu-lhe à porta para encomendar o retrato de sua filha de quinze anos. Havia visto o quadro do menino na casa do homem alto. Começou a pintar no dia seguinte.
 
A menina tinha longos cabelos loiros. Naquela primeira sessão, depois de esboçar-lhe o rosto, dedicou-se a colocar na tela as luzes brincando nos longos fios sedosos. Depois que elas se foram, sentou-se a admirar seu trabalho. Os cabelos pareciam ter vida.
 
Na próxima sessão, a menina estava de tranças, mas não importava - o cabelo estava pronto. Com esmero, colocou na tela as cores daquele rosto ainda infantil. Envolvido nas tintas, nem percebeu que a menina adormecera na poltrona. A mãe a levou embora, e ele continuou trabalhando noite adentro até terminar o quadro.
 
No dia seguinte a mãe lhe telefonou. "Não, ela não pode posar hoje. Está muito doente. Queria apenas saber como está o trabalho."
 
Passaram-se as semanas, mas a mãe não retornou ao estúdio. Outra vez ele precisou telefonar. Ela pegaria o quadro naquela tarde. Com lágrimas escorrendo pelo rosto, ela tomou o quadro nas mãos. "Seu cabelo era tão lindo! Ela o perdeu todo, antes de falecer..."
 
Passaram-se diversas semanas sem que ninguém lhe batesse à porta ou telefonasse para fazer uma encomenda. Outra vez as contas se acumulariam na mesa da cozinha. Outra vez o refrigerador ficaria vazio. Para distrair-se, puxou o cavalete para perto do espelho. Vou fazer meu auto-retrato.
 
Pintou por horas a fio, colocando na tela seu cabelo escuro, seus traços finos. Já era tarde da noite quando deitou os pincéis. Sua cabeça doía.
 
No outro dia, arrastou-se da cama e recomeçou a pintar sem nem mesmo tomar tempo para uma xícara de café. Na tela, seu rosto apareceu tão real quanto o que lhe dizia o espelho. Trabalhou até que os braços lhe doessem demais para continuar.
 
No dia seguinte não teve forças para pintar. Não importa. A tela está terminada. Sentou-se à frente de seu próprio rosto na tela, admirando a perfeição de seu trabalho. Era como se a pintura tivesse vida própria. Aproximou-se da tela, molhou o pincel na tinta e, com dificuldade, assinou seu trabalho.
 
Encontraram-no cinco dias mais tarde, caído à frente do cavalete. Na tela, seu rosto jovem e perfeito parecia ter vida própria.
 

 
Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 08/08/2009
Reeditado em 09/08/2012
Código do texto: T1743889
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