O RESGATE
Ele, Jerônimo, era um homem muito comedido, fora educado sob rígidos ensinamentos. Seu pai, senhor severo, impusera-lhe sempre a disciplina extrema. “Sonhar - discursava – é atitude dos fracos. Filho meu tem que ter rédeas e consciência da realidade...” Assim, crescera Jerônimo. Tornara-se um rapaz muito pé no chão. Herdara uma profissão, porque nem sequer cogitara em mudar a sina da família. Era lavrador em terras alheias, como tinha sido seu avô, pai e eram, também, seus irmãos. Nunca, desde que nascera, havia saído da Aldeia do Ipê amarelo, assim chamada por causa da predominação dessa árvore na paisagem do lugar.
Jerônimo, então, transformara-se em um homem trabalhador, responsável para com os seus. Ocupando, por ser o mais velho, o lugar do pai que viera a falecer quando o filho mal tinha saído da adolescência. Mas, como tudo tinha que sair conforme os preceitos da sua criação, havia chegado a hora de constituir a própria família.
Foi então que conheceu Sofia. Moça faceira, que vivia se aventurando com a molecada do lugarejo, subindo em árvores, sem se dar conta ou se importar que já era mocinha formada, muito bonita e que atraía olhares masculinos, cobiçadores, para sua figura de ninfeta à flor da pele. Uns diziam que ela não tinha lá muitos miolos, pois, às vezes, Sofia cismava o olhar no infinito dizendo que queria conhecer o mundo que estava atrás das montanhas. E, algumas dessas vezes, até tentara fugir, perdendo-se na floresta, tendo que ser resgatada de volta. No entanto, viu em Jerônimo um “quê” de estrela que a encantou de forma arrebatadora. Ficou enamorada, e aquele desejo de fugir dali se aquietou, temporariamente, na sua alma. Ele, por sua vez, retribui o sentimento e, tão logo, casaram-se.
Passaram-se alguns anos, nos quais Jerônimo seguiu com sua lida de lavrador e Sofia com sua vida de cozinhar, tecer e esperar... Esperar pela próxima primavera. Esperar pelo entardecer. Esperar o regresso do marido. Esperar pelo dia seguinte... Sua vida era uma eterna espera. Mas Jerônimo estava cansado de esperar que ela esperasse os filhos para que ele pudesse passar-lhes a lida e toda educação que herdara. A esposa demorava a engravidar e isto muito o perturbava. Começou acreditar que ela era incapaz de gerar e, no seu entendimento, passou a compará-la com uma terra infértil. Sentiu-se desafortunado, mas ainda dispensava a ela o seu carinho e seu cuidado.
Pela aldeia, alguns comentários maldosos já estava mexendo com a paciência de Jerônimo. Algumas pessoas, à boca pequena, diziam que Sofia era incapaz de ficar prenha porque nunca fora normal da cabeça e, devido a isto, Deus sabia o que estava fazendo. “Já pensou como seriam as crianças concebidas daquele ventre? ", espreitavam as más línguas.
Seguiam-se assim os dias. Até que Sofia cansou de esperar e saiu para contemplar o infinito, vontade que vinha podando, mas que não deixava de crescer dentro dela. Um dia, algo lhe tocou mais profundo. Não sabia se era ela quem fitava a imensidão ou era a imensidão que a fitava. Sentiu-se como parte daquele universo e teve vontade de voar. Aquilo passou a persegui-la dia e noite. Era algo que não conseguia controlar. Dessa forma, começou a abandonar os afazeres domésticos. O marido já não a encontrava em casa quando retornava do trabalho, sempre tinha que ir buscá-la sob protestos, à beira do precipício. Todo mundo o alertou que era loucura. Então procurou o doutor de cabeça, que nada lhe adiantou. Chamou curandeiro, que nada remediou... Assim, tomando do que mais achava apropriado, pois não via outra solução, a trancafiou no porão de sua casa. Sofia esperneou, maldiçoou-o, chorou e ele não lhe deu ouvidos. Afinal, Jerônimo acreditava que aquilo era para o seu próprio bem e estava a protegendo de si mesma.
Foram-se dias, meses... Ele levava alimento e água, todos os dias, ao cativeiro (assim parecia), da esposa. Não ousava olhá-la nos olhos, pois sentia que ela o odiava. Com o tempo, Sofia já não mais gritava. Tornou-se silenciosa e distante. Jerônimo foi deixando de insistir para que se alimentasse, simplesmente deixava o alimento e saía. Sofia, muito magra, era uma sombra do que tinha sido.
Então, explodiu uma guerra civil no país. A aldeia foi tomada pelos inimigos, que saquearam, mataram, incendiaram várias casas e fizeram alguns prisioneiros, um dos quais era Jerônimo. Esses soldados tomavam as mulheres como suas, estuprando e, em seguida, matando-as, pois eles não viam propósitos em tê-las como reféns. Eram muito frágeis, poderiam engravidar e não serviriam para o trabalho braçal que todos os homens estavam destinados. Muito menos as crianças seriam, então, poupadas. Por isso, Jerônimo achou melhor não revelar o paradeiro da esposa. "logo tentaria um jeito de fugir e libertá-la", pensou.
Levaram Jerônimo para um campo de concentração, complicando os seus planos de soltar Sofia, onde lutou contra a morte, fazendo de tudo para sobreviver aos maus tratos, às doenças e ao racionamento de comida. Durante meses, ia conseguindo se manter vivo e com esperanças, ainda que tudo parecesse improvável e impossível. Até que veio um tratado de paz. Todos os prisioneiros foram libertados.
Jerônimo correu, desesperado e temeroso, para aldeia em busca de notícias de Sofia. "Quem sabe ela tinha conseguido fugir...", buscava acalmar o coração. Encontrou o lugar em ruínas, devastado e abandonado. Mas avistou sua casa ainda em pé. Procurou pelo porão com esperanças de encontrar sua mulher ainda com vida (sentia a angústia na garganta) porém... O corpo de Sofia estava lá, vazio, apagado, sem aquele olhar... Já em decomposição. O homem saiu em prantos até o seu arado destruído, caiu sobre o chão, em soluços profundos, e gritou bem alto pela esposa. Pediu perdão, aos quatro ventos, e implorou pela morte...
Estava com a cabeça entre as mãos, quando sentiu a presença de alguém. Veio-lhe sensação igual à que sentira, quando entrara na igreja ainda vazia, naquele tempo que era criança, e ficara fascinado com imensidão do templo com seus santos, imaculados, dispostos nas paredes. Subia-lhe um calafrio na alma, mas não era de medo. Era de um sentimento de arrebatamento interior. Nesse estado, voltou os olhos para cima e constatou uma luz imensa que quase o cegou. Protegeu a visão para identificar o que era aquilo e decifrou Sofia... Sim, Sofia suspensa, vestido esvoaçante, a flutuar sobre sua cabeça, estendendo-lhe a mão num pedido de aproximação. Trazia um leve e conformado sorriso nos lábios.
E Sofia era toda imensidão. Um anjo cheio de luz. Jerônimo não se amedrontou, não fugiu de pavor da alma de outro mundo. Dentro dele, algo se resolvia, dava alívio ao seu espírito desnorteado, suscitava-lhe a compreensão de tudo. Foi o que o conduziu a estender a mão àquele ser iluminado e se deixar levar por uma dor fulminante que lhe tomou o peito, arrebentando o coração e fazendo-o parar. Entretanto, não sentiu que era o fim. Deparou, novamente com os olhos iluminados de Sofia e, assim, pode contemplar as estrelas que jamais soubera que existiam, por ter sempre olhado para o chão. Deslumbrou do alto, pela única e última vez, a dança ao vento dos ipês amarelos que sempre fizeram parte da sua vida, mas que ele nunca os vira tão belos e, dessa maneira, foi resgatado para além do sonho.
Ele, Jerônimo, era um homem muito comedido, fora educado sob rígidos ensinamentos. Seu pai, senhor severo, impusera-lhe sempre a disciplina extrema. “Sonhar - discursava – é atitude dos fracos. Filho meu tem que ter rédeas e consciência da realidade...” Assim, crescera Jerônimo. Tornara-se um rapaz muito pé no chão. Herdara uma profissão, porque nem sequer cogitara em mudar a sina da família. Era lavrador em terras alheias, como tinha sido seu avô, pai e eram, também, seus irmãos. Nunca, desde que nascera, havia saído da Aldeia do Ipê amarelo, assim chamada por causa da predominação dessa árvore na paisagem do lugar.
Jerônimo, então, transformara-se em um homem trabalhador, responsável para com os seus. Ocupando, por ser o mais velho, o lugar do pai que viera a falecer quando o filho mal tinha saído da adolescência. Mas, como tudo tinha que sair conforme os preceitos da sua criação, havia chegado a hora de constituir a própria família.
Foi então que conheceu Sofia. Moça faceira, que vivia se aventurando com a molecada do lugarejo, subindo em árvores, sem se dar conta ou se importar que já era mocinha formada, muito bonita e que atraía olhares masculinos, cobiçadores, para sua figura de ninfeta à flor da pele. Uns diziam que ela não tinha lá muitos miolos, pois, às vezes, Sofia cismava o olhar no infinito dizendo que queria conhecer o mundo que estava atrás das montanhas. E, algumas dessas vezes, até tentara fugir, perdendo-se na floresta, tendo que ser resgatada de volta. No entanto, viu em Jerônimo um “quê” de estrela que a encantou de forma arrebatadora. Ficou enamorada, e aquele desejo de fugir dali se aquietou, temporariamente, na sua alma. Ele, por sua vez, retribui o sentimento e, tão logo, casaram-se.
Passaram-se alguns anos, nos quais Jerônimo seguiu com sua lida de lavrador e Sofia com sua vida de cozinhar, tecer e esperar... Esperar pela próxima primavera. Esperar pelo entardecer. Esperar o regresso do marido. Esperar pelo dia seguinte... Sua vida era uma eterna espera. Mas Jerônimo estava cansado de esperar que ela esperasse os filhos para que ele pudesse passar-lhes a lida e toda educação que herdara. A esposa demorava a engravidar e isto muito o perturbava. Começou acreditar que ela era incapaz de gerar e, no seu entendimento, passou a compará-la com uma terra infértil. Sentiu-se desafortunado, mas ainda dispensava a ela o seu carinho e seu cuidado.
Pela aldeia, alguns comentários maldosos já estava mexendo com a paciência de Jerônimo. Algumas pessoas, à boca pequena, diziam que Sofia era incapaz de ficar prenha porque nunca fora normal da cabeça e, devido a isto, Deus sabia o que estava fazendo. “Já pensou como seriam as crianças concebidas daquele ventre? ", espreitavam as más línguas.
Seguiam-se assim os dias. Até que Sofia cansou de esperar e saiu para contemplar o infinito, vontade que vinha podando, mas que não deixava de crescer dentro dela. Um dia, algo lhe tocou mais profundo. Não sabia se era ela quem fitava a imensidão ou era a imensidão que a fitava. Sentiu-se como parte daquele universo e teve vontade de voar. Aquilo passou a persegui-la dia e noite. Era algo que não conseguia controlar. Dessa forma, começou a abandonar os afazeres domésticos. O marido já não a encontrava em casa quando retornava do trabalho, sempre tinha que ir buscá-la sob protestos, à beira do precipício. Todo mundo o alertou que era loucura. Então procurou o doutor de cabeça, que nada lhe adiantou. Chamou curandeiro, que nada remediou... Assim, tomando do que mais achava apropriado, pois não via outra solução, a trancafiou no porão de sua casa. Sofia esperneou, maldiçoou-o, chorou e ele não lhe deu ouvidos. Afinal, Jerônimo acreditava que aquilo era para o seu próprio bem e estava a protegendo de si mesma.
Foram-se dias, meses... Ele levava alimento e água, todos os dias, ao cativeiro (assim parecia), da esposa. Não ousava olhá-la nos olhos, pois sentia que ela o odiava. Com o tempo, Sofia já não mais gritava. Tornou-se silenciosa e distante. Jerônimo foi deixando de insistir para que se alimentasse, simplesmente deixava o alimento e saía. Sofia, muito magra, era uma sombra do que tinha sido.
Então, explodiu uma guerra civil no país. A aldeia foi tomada pelos inimigos, que saquearam, mataram, incendiaram várias casas e fizeram alguns prisioneiros, um dos quais era Jerônimo. Esses soldados tomavam as mulheres como suas, estuprando e, em seguida, matando-as, pois eles não viam propósitos em tê-las como reféns. Eram muito frágeis, poderiam engravidar e não serviriam para o trabalho braçal que todos os homens estavam destinados. Muito menos as crianças seriam, então, poupadas. Por isso, Jerônimo achou melhor não revelar o paradeiro da esposa. "logo tentaria um jeito de fugir e libertá-la", pensou.
Levaram Jerônimo para um campo de concentração, complicando os seus planos de soltar Sofia, onde lutou contra a morte, fazendo de tudo para sobreviver aos maus tratos, às doenças e ao racionamento de comida. Durante meses, ia conseguindo se manter vivo e com esperanças, ainda que tudo parecesse improvável e impossível. Até que veio um tratado de paz. Todos os prisioneiros foram libertados.
Jerônimo correu, desesperado e temeroso, para aldeia em busca de notícias de Sofia. "Quem sabe ela tinha conseguido fugir...", buscava acalmar o coração. Encontrou o lugar em ruínas, devastado e abandonado. Mas avistou sua casa ainda em pé. Procurou pelo porão com esperanças de encontrar sua mulher ainda com vida (sentia a angústia na garganta) porém... O corpo de Sofia estava lá, vazio, apagado, sem aquele olhar... Já em decomposição. O homem saiu em prantos até o seu arado destruído, caiu sobre o chão, em soluços profundos, e gritou bem alto pela esposa. Pediu perdão, aos quatro ventos, e implorou pela morte...
Estava com a cabeça entre as mãos, quando sentiu a presença de alguém. Veio-lhe sensação igual à que sentira, quando entrara na igreja ainda vazia, naquele tempo que era criança, e ficara fascinado com imensidão do templo com seus santos, imaculados, dispostos nas paredes. Subia-lhe um calafrio na alma, mas não era de medo. Era de um sentimento de arrebatamento interior. Nesse estado, voltou os olhos para cima e constatou uma luz imensa que quase o cegou. Protegeu a visão para identificar o que era aquilo e decifrou Sofia... Sim, Sofia suspensa, vestido esvoaçante, a flutuar sobre sua cabeça, estendendo-lhe a mão num pedido de aproximação. Trazia um leve e conformado sorriso nos lábios.
E Sofia era toda imensidão. Um anjo cheio de luz. Jerônimo não se amedrontou, não fugiu de pavor da alma de outro mundo. Dentro dele, algo se resolvia, dava alívio ao seu espírito desnorteado, suscitava-lhe a compreensão de tudo. Foi o que o conduziu a estender a mão àquele ser iluminado e se deixar levar por uma dor fulminante que lhe tomou o peito, arrebentando o coração e fazendo-o parar. Entretanto, não sentiu que era o fim. Deparou, novamente com os olhos iluminados de Sofia e, assim, pode contemplar as estrelas que jamais soubera que existiam, por ter sempre olhado para o chão. Deslumbrou do alto, pela única e última vez, a dança ao vento dos ipês amarelos que sempre fizeram parte da sua vida, mas que ele nunca os vira tão belos e, dessa maneira, foi resgatado para além do sonho.