O outro lado -> Parte II - O Nascer da noite

O mundo paralisou.

O silêncio foi mais cortante que qualquer outra algazarra; Eu via com minha visão periférica todos os carros parados e a multidão em silêncio. Ou eu estava surda? Senti as pedrinhas do asfalto incomodarem minhas costas, e o meu cabelo ensopado. Afinal, o que acontecera?

Meus olhos se viraram dolorosamente para o lado, onde eu podia vê-lo se afastar. Os pés silenciosos como o mundo a minha volta, quase em câmera lenta. Ele me entendia, e me deixou para trás. No meu próprio paraíso. Idealizado e meu. E se afastava, e se afastava, lentamente, me dando espaço num lugar onde a cor, antes memorizada pela visão embaçada, já não se via mais.

Eis que o roxo, o azul marinho e o negro tomam conta do mundo; Pintados com estrelas como contas de brilhantes derrubadas no chão por uma criança a procura do mundo que não pode encontrar, marcando seu caminho de volta; um caminho sem volta. E nuvens cinzas vinham como seda, dançando com o vento lá em cima, cobrir a rainha da noite, que hoje se escondia tímida atrás de seu véu escuro, mostrando apenas sua silhueta. Será que estava vestida com a tristeza da decepção? Ou preparada elegantemente para o meu velório?

Em plena noite.

Sei que sorri e todos se assustaram. Ele me entendia, ele me entendia. A visão voltava e agora eu podia distinguir os rostos e as cores novamente cinzas em contraste com o vermelho em volta de mim, no asfalto quente depois de um dia de sol escaldante e de carros velozes passando.

Até que o vi. Gritei! Não era ele, mas ele.

Lá em cima, na ponte.. Não era ele, mas o monstro que me atormentava em sonhos que não deveriam ser meus, me dando respostas que eu não queria ouvir, e me obrigando a escrevê-las depois, no meu caderno, hoje dispensado. Ele estava com a bolsa, a qual continha minhas respostas, e sorria um sorriso macabro sobre sua pele extremamente branca. Sorria pra mim.

Minha voz saiu estranha da garganta, como se não fosse minha, como se fosse mais um vômito do que um grito, seguido de algo quente e meloso saindo da boca. Como mel sem doce, amargo.

Puxei o ar com dificuldade e o senti queimar e arder por dentro. Foi quando percebi a multidão se dissipar, me deixando ali, sozinha com o monstro. Eu e ele separados por poucos metros de distancia. Onde estaria o herói da donzela em perigo agora?

Eu tentei gritar, mas o mel me veio à boca novamente, quase me sufocando. Eu estava frágil.

Tentei mexer as pernas, mas elas não respondiam. Senti o frio líquido vermelho, mas elas não. Estas não me respondiam. Sentia o odor de ferrugem e ele se aproximando, cada vez mais e mais. Tentei me mexer, porém agora quem estava paralisada era eu.

Apesar do que previa, seu corpo era quente e aconchegante. Eu tentei mais uma vez, sem querer ter sucesso.

Ele sorriu, perto do meu rosto. Não era assim tão assustador ter seu ar a soltar tão perto assim. Tentei evitar seus olhos quando ele, gentilmente, pousou ao meu lado a bolsa marrom. Mas eles hipnotizaram-me. Eu sorri, me dando por vencida; uma estranha contração na face que eu tinha certeza parecer mais uma careta que um sorriso.

Então me deu vida novamente, e eu respirei sentindo um coração que voltava a bater aqui dentro. Eu ri ao ver que já podia me erguer; sobre mãos, joelhos e calcanhares.

Olhei ao redor e os carros haviam sumido, junto com seu brilho. As pessoas haviam desaparecido juntamente com o barulho que gostavam de fazer com a boca. Tudo estava deserto, tudo meu. Eu sorri para o meu egoísmo, e caminhei para a direção que mais me agradava sentindo os choques e os arrepios inexplicáveis quando o vento quente do por-do-sol que já se fora misturado às brisas frescas da noite que nascia me massageavam os cabelos agora limpos.

Sabrina Vieira
Enviado por Sabrina Vieira em 03/09/2008
Reeditado em 09/10/2012
Código do texto: T1160195
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