O anjo ruivo
As tardes cinzentas do outono londrino acentuavam ainda mais a minha solidão naquele país de gente educada, mas distante. A bolsa de pesquisa ainda iria durar até o verão do ano seguinte, quando estaria de volta ao Brasil, e isso me fazia buscar uma força que nem sei se tinha para suportar o meu isolamento naqueles dias. Minha rotina de estudos começava às 9 horas, logo após a primeira refeição; eram quase seis horas ininterruptas, levando-me a deixar a casa onde estava morando no Chelsea (bairro central) sempre às 16 horas. Meu passeio diário era, talvez, minha principal válvula de escape e uma forma de sentir a vida pulsar ao meu redor.
Seguia a pé até o Piccadilly Circus – uma praça maravilhosa que fica no coração de Londres – onde os punks da cidade se reúnem todos os dias após as 17 horas, exibindo suas roupas e penteados exóticos. Ariscos, nunca se deixavam fotografar pelos turistas que viam neles cartões postais ambulantes de uma outra Inglaterra. De botas pesadas, sobretudo, luvas, gorro e cachecol, aquela elegância forçada me agradava e me fazia lembrar do quanto estava longe dos trópicos; meu andar lento com olhos de observador contrastava com a grande maioria dos que passavam rápido, sempre taciturnos e ensimesmados.
Sentado num dos inúmeros bancos da praça, por longos momentos permitia-me ser apenas um mero espectador dos detalhes que faziam tão peculiar aquela megalópole européia. No entanto, eram as estações do metrô as minhas preferidas; nelas, todas as raças do planeta podiam se encontrar, ainda que de uma maneira tão breve e fria, e eu podia me perder em meio aos mais belos rostos femininos que já vi. Leicester Square, Earl’s Court, Convent Garden, West Kensigton: circulava por todas elas até bem depois do anoitecer, quando o movimento diminuía e as pessoas buscavam abrigo em suas casas ou nos inúmeros cafés espalhados pela cidade.
Foi nesse cenário absolutamente urbano que me convenci da existência dos anjos. Faltavam 20 minutos para as 18 horas e eu acabava de chegar à estação Convent Garden, onde me deparei com uma cena que, tenho certeza, dificilmente esquecerei enquanto viver. Meus olhos foram atraídos para aquela menina branca, de sardas no rosto e cabelos cor de fogo, emoldurados por um gorro verde musgo. Ela parecia ter menos de dez anos e sua voz de soprano, como das divas de ópera, tomava todo o ambiente e mantinha a sua frente um razoável número de ouvintes, hipnotizados pela sua música, como eu. Ao seu lado um homem cego, também ruivo – certamente seu pai – a acompanhava num acordeon.
A canção, apesar de melancólica, não era triste e falava das coisas simples e belas da criação divina, mostradas como se já não mais fossem percebidas pelas pessoas. O canto dos pássaros ao alvorecer, os tons violeta do crepúsculo, as estrelas, as montanhas, enfim, a exuberância da natureza... tudo enumerado como nos desenhos infantis feitos em caderno escolar com aquarela. Ao final de cada estrofe ela entoava a palavra “halellujah” (aleluia), repetida algumas vezes numa melodia indescritível, marcada com a pronúncia inglesa a acentuar o “h” inicial, dando-lhe o som de “r”. Nunca em toda a minha vida pude compreender com tanta precisão toda a grandeza desta palavra tão usual no cotidiano das religiões ocidentais. Aleluia: cântico de alegria e louvor a Deus. Sim, é isto! uma criança conseguiu traduzir pra mim o que nunca consegui sentir todas vezes em que a ouvi pronunciada.
Talvez uma saudade de não sei o quê tenha sido naquele instante um ingrediente a mais a emudecer meu coração e a fazer saltar, subitamente, uma torrente de lágrimas. Era impossível disfarçar minha emoção diante daquele anjo ruivo de olhos luminosos e de uma pureza que sempre imaginei inerente aos seres angelicais, nas minhas distantes fantasias pueris. Por uma fração de segundo ela virou-se em minha direção, fazendo meu coração perder seu ritmo; tive ali uma estranha certeza de que seu olhar foi como se tivesse confirmado que eu havia captado a sua verdade...
Não tenho idéia de quanto tempo fiquei paralisado a observá-la. Sei apenas que vivi algum tipo de revelação – nada que alguém possa chamar de aparição ou visão sobrenaturais; é como se eu tivesse flagrado algum tipo de segredo. Saí daquela estação e tudo parecia estar em silêncio lá fora; entrei num café, sentei-me num canto isolado e pedi uma xícara de capuccino. Com uma caneta emprestada do garçom, passei a escrever num guardanapo linhas e linhas desconexas, que dois anos mais tarde – já do outro lado do Atlântico – serviriam de testemunho para tudo aquilo que vi e ouvi. Quanto ao anjo ruivo, nunca mais o veria novamente... Nem nos metrôs londrinos nem sequer em sonho.