O velório sem morto
Já fazia mais de um mês que ninguém morria naquela pequena cidade do interior gaúcho. Pelo menos que se ficasse sabendo. Num repente o bocão – carro de som – invadiu as ruas centrais e periféricas com o derradeiro anúncio em som altíssimo:
- A família do sempre lembrado José Pedro de Alcântara convida pessoas de suas relações e amizades para os atos fúnebres de sepultamento deste ente querido, hoje, velório na Capela Municipal e enterro no cemitério, ás 16h.
- Olha menina! Morreu alguém! Quem será? – perguntou dona Maria, viúva de um militar que lá pelos seus 70 e poucos anos estava atenta em tudo que acontecia na cidade.
- Não sei minha vó – respondeu sua neta Maria Flor – mas deve ser alguém importante, até se assina “de Alcântara”.
Num minuto a velha viúva já estava pronta.
- Preciso consolar a família!
- Mas não é um pouco cedo minha vó?
- Nunca é cedo para a despedida de um ente querido – e saiu do seu velho casarão no centro da cidade para o cemitério, não muito longe dali.
Na casa das irmãs Dolores e Zulmira, solteironas que já beiravam os 50, as duas também se aprontavam.
- Precisamos nos despedir dele e dar os pêsames à família! Será que vai ter muita gente Dolores?
- Deve estar cheio minha irmã, vamos nos arrumar bem, afinal, não é todo dia que acontece uma morte por aqui!
Em seguida já estavam prontas para ir ao cemitério.
Na Câmara de Vereadores ocorria a sessão semanal e três vereadores de partidos tradicionais diferentes entraram com o mesmo pedido para ser votado: votos de pesar.
“O vereador solicita que seja aprovado voto de pesar pela perda irreparável do sempre lembrado José Pedro de Alcântara e que essa correspondência seja enviada a seus familiares.”
- Senhor presidente, um aparte, coloca aí que se não fosse o mal serviço oferecido pela Prefeitura ele ainda estaria entre nós! - disparou um vereador da oposição.
- “Disconcordo” excelentíssimo presidente, bota no voto que ele era um grande cidadão e amigo do município e que a Prefeitura sempre lhe apoiou.
Na Prefeitura, enquanto isso, o prefeito declarava luto oficial de três dias, pela perda irreparável do sempre lembrado José Pedro de Alcântara!
A Câmara parou a sessão, a Prefeitura encerrou o expediente, algumas lojas fecharam mais cedo, as escolas cancelaram às aulas e os barbeiros e cabeleireiras pararam de atender em massa – parecia até greve geral.
Todos para o cemitério! A viúva Maria – viúva do militar, há 5 anos, é bom que se diga – entrou chorando e lamentando a perda, enquanto procurava a família para consolar.
- Acho que a família não chegou! - observou um importante advogado.
- Dizem que está vindo de Porto Alegre – presumiu um conhecido barbeiro, do mais freqüentado salão.
Mais e mais gente chegava para o velório, enquanto o caixão estava fechado no centro da capela mortúaria.
- Maria, o pobre vai ser enterrado hoje? - indagou Dona Maricota, a primeira dama do município. - Meu marido Astolfo já está chegando, afinal é muito importante o prefeito vir para se despedir!
- Daqui a pouco é o enterro. A senhora já encontrou a família?
- Não sei, mas talvez seja aquela senhora ali. Está chorando desoladamente!
- Que nada, aquela é a Rosa Helena... o marido correu ela de casa, há dois dias.
- Mas por quê? Me conta Maria.
- Dizem que ela estava com o jardineiro. E já fazia um bom tempo!
- Bah – disse a primeira dama. - É uma descarada! - exclamou em seguida olhando para a mulher.
Já eram quase quatro da tarde – hora do anunciado enterro – e nada. O prefeito já tinha dado ordem para que o túmulo fosse preparado num privilegiado local do Cemitério Municipal. Só faltava a família para autorizar o enterro. E nada. Mais uma hora, mais duas.
Às sete da noite, todos os muitos presentes já estavam cansados de chorar, lacrimejar, soluçar, conversar, contar causos, tentar imaginar a história do morto – ou contar uma história qualquer, de uma pescaria que foram juntos -, quando o prefeito deu a ordem:
- Parece que a família não vem! Peguem o caixão e vamos sepultar este pobre homem. Como tantos outros de uma importância inigualável para a nossa sociedade... e blá, blá, blá... - mais de meia hora de discurso político, afinal era ano eleitoral.
O padre também veio para dar a extrema unção. Todos oraram. Ouviam-se choros por toda a parte.
E o caixão foi levado ao túmulo. Enterraram-no e fecharam a vala. Todos puderam então voltar em paz para suas casas e comentar tudo e todos que estavam no velório.
Atrás do muro do cemitério, Zeca, Luis Alberto e Marquinhos, que antes divertiam-se muito, agora estavam preocupados com o que acabara de acontecer. A brincadeira tinha dado certo demais.
- A idéia de botar o caixão ali foi tua!
- Mas quem mandou anunciar foi o Zeca!
- O nome foi tu quem inventou...
- Vamos esquecer isso – disse o sábio Luis Alberto, considerado o CDF da escola. - Todo mundo acha que essa pessoa morreu, só nós sabemos que não havia morto nenhum. Basta fazermos um pacto de silêncio! Levaremos essa história conosco pro resto da vida sem falar para ninguém!
Luis Alberto era o que tinha mais consciência da confusão em que estavam e mesmo com seus 11 anos, mesma idade dos amigos, previa que se alguém descobrisse podia causar muitos transtornos.
- Tudo bem, mas o papai até discursou e a mamãe estava toda de luto. Estou arrependido! - disse Marquinhos.
- Teu pai é o prefeito e fazer discurso é sempre bom pra ele, ainda mais que tem eleição e tua mãe pôde usar a roupa preta que estava guardada há meses.
Após muita discussão, eles decidiram oficilizar o pacto de silêncio! Até hoje ninguém foi buscar a Certidão de Óbito de José Pedro de Alcântara no cartório de registros, que se apressou em fazer o documento, mesmo sem ter a carteira de identidade e a certidão de nascimento do morto.