Juca Serra

Juca Serra nunca gostou de jogos, só assistia. Não torcia. Todos os dias, após o trabalho, ia na vendinha do Chico Onça, o Canto do Pinguela. Lá, tomava suas três doses de pinga antes de voltar para casa. Era o tempo para Dinorá acabar de fazer o jantar. Sentava e comia calado. Não tinha nada para contar do seu dia. Dinorá também. Às vezes trocavam uma palavra ou outra sobre o calor, se ia chover, se queria ou não um café. E o tempo passava.

Gostava de assistir os outros jogando sinuca. Se fosse pela sua experiência só de assistir, era campeão mundial. Sabia direitinho os ângulos e quando as tacadas não iam dar em nada. Mas não opinava nunca. Ria muito por dentro, sem esboçar nenhum sorriso. Se alguém percebia que ele estava prestando atenção, disfarçava. Já há muito nem o chamavam mais para um partida. Ele sempre negava.

Já tinha visto briga por causa de jogo. Não se conformava com isso. Já tinha visto gente perder tudo, até casa, por causa de aposta em jogo. Só balançava a cabeça com olhos no fundo do copo já vazio. Não se demorava no Canto do Pinguela. Como trabalhava na construção civil, seu corpo reclamava logo, por causa das longas horas embaixo de chuva ou sol.

Foram sempre três doses. Nem mais nem menos. Por isso, não lhe faria mal, pensava. Tinha essa certeza na vida: não se deve mexer no que está quieto. E assim levou sua juventude, tornou-se adulto, enfim. Ia morrer assim. E só bebia nos dias que tinha trabalho. Nos outros, não tinha porquê beber. Dinorá também nunca reclamou nesses trinta e dois anos de casados. Ela também tinha suas manias que ele fazia que nem via. Mas se irritava. Pra que colocar pano úmido na porta de casa para limpar os pés? Só servia para transformar a terra em lama. Toda vez que entrava, deixava umas três ou quatro pegadas até sumirem. Era o tempo de entrar no banheiro para ouvir a Dinorá com o rodo e um pano para limpar. Não adiantaria falar.

E assim foi levando... essa é outra certeza que Juca Serra tinha na vida: tem coisas que não adianta falar. Quer um exemplo? Todos perguntavam se seu nome mesmo era José Carlos Serra ou João Carlos Serra, ou algo assim. Se não precisasse mostrar documento, respondia que não, que era só Juca Serra mesmo. Na verdade seu nome era Francisco. Pois é... o apelido, desde pequeno, não combinava com seu nome verdadeiro. Mas se falasse que se chamava mesmo era Francisco iam perguntar o por quê do Juca. Como ele não sabia responder, já falava que seu nome era Juca de registro e pronto. O pior seria se descobrissem que seu sobrenome também não era Serra... aí sim...

Um dia, voltando do trabalho, caminhando como sempre, fosse a distância que fosse, viu uma coisa que nunca mais saiu da sua cabeça: um quadro. Nunca soube quem pintara, nem precisou saber. Achava bonito apenas. Só vira uma vez, mas era como se visse todos os dias. Se quisesse lembrar, bastava fechar os olhos, relaxar um pouco o corpo cansado e puxar pela lembrança. Como uma fotografia. Era um quadro de uma mulher de cabelos compridos, uma blusa ou vestido preto que lhe mostrava um pouco os seios. Achava indecente sim, mas no todo, era tudo tão bonito, que não ligava para isso mais. Nem séria, nem sorrindo. A pele clara, como das mulheres da riqueza. Devia ser muito feliz, devia ter muitos bens e se cuidar. Não parecia casada, nem solteira. Seu cabelo não combinava muito com o rosto angulado mas isso não importava também. Braços cruzados como quem espera há algum tempo. E o mais maravilhoso de tudo era que a mulher naquele quadro o acompanhou com o olhar. Aqueles olhos cheios de razão disseram coisas que ele nunca mais esqueceu também. Uma das frases foi: continua caminhando, Juca, pois o mundo não pára de rodar. Se você parar em pé, você cai. E assim ele sempre fez. Era um quadro muito bonito para sua noção de beleza. Aliás, era mais do que bonito, mas ele não tinha palavra nenhuma para descrever essa beleza toda.

Durante muito tempo, Juca tentou dar um nome para aquela linda mulher do quadro. Nunca descobriu um nome a sua altura. Mas isso não era problema. O importante fora sua mensagem. Em um último adeus que ele lançou àquele olhar ela ainda teve tempo de perguntar: alguma vez você entrou em uma casa que ajudou a construir, depois de pronta? Ele não respondeu, envergonhou-se. Ela tinha toda razão, além de beleza. Nunca pôde compartilhar nem mesmo com os olhos uma decoração moderna. Nunca pôde sentir a maciez do luxo ou o cheiro da qualidade. Nunca respirou a brisa vinda das janelas que levava dias para montar. Pintava parede mas não escolhia o sofá que combinasse. Deixava espaço para jardins mas não chegava a ver suas flores.

Diante dessa pergunta evitou seu olhar para sempre. Continuou caminhando, não olhou para trás. Nunca contou o fato a ninguém. Guardou a vergonha para si. Entre tantas certezas de Juca, essa era a principal: nunca falar daquilo que se envergonhe. A princípio ficara com muita raiva daquela mulher. Teve vontade de voltar lá, arrancá-la daquela parede e jogá-la no rio. Só acalmaria quando toda a moldura estivesse submersa. Mas aprendera desde cedo a engolir sua raiva. Algumas vezes tentou tirá-la do pensamento para não ter que relembrar aquelas palavras profundas numa voz tão suave. Mas foi mudando de opinião. Em uma noite solitária até pensou em voltar lá para vê-la de novo e desta vez, responder à sua pergunta _não!, mas nunca o fez. Talvez ela tivesse mesmo razão. Mas mesmo com sua razão toda, nunca iria saber por que Juca tivera uma vida simples assim. Nunca conseguiria entender porque um homem que trabalhava tão duramente não conseguira saber o que era o menor dos confortos. Mas como Juca tinha a sua certeza de que a gente tem só aquilo que a gente tem mesmo, não adiantava falar...

Liz Hardt
Enviado por Liz Hardt em 26/01/2008
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