Marchinha triste

Se fosse sábado, não seria sábado. Se fosse sexta-feira, também. Não tinha cara de dia nenhum da semana ou do final de semana. Um dia comum, apenas. Na cabeça, o cabelo amarrado e um pensamento longe. No corpo, as vezes cansado, outras vezes agitado, repousava um vestido sem-graça, montado, uma saia costurada na blusa que ficou até bonito. Braços fortes, que já tinham carregado anos de trabalho, agora fracos, lentos. As pernas pendiam uma para cada lado, caminhando num sincronismo sem pressa, sem pretensão de chegar a lugar nenhum pela casa. Passava o tempo, passava a roupa. Puxava conversa em pensamento com a televisão sem volume, puxava cortina para lavar. Arrasta móvel, arrasta o tempo, o tempo se arrasta. Na mente, de repente, uma marchinha triste. Balançava a cabeça para esquecer mas a marchinha voltava. Tentava pensar em alguma coisa: a chuva que não caiu, a conta de luz que não pagou, as toalhas que não tinha lavado ainda. A marchinha voltava. Olhava a TV tentando imaginar o que falavam as pessoas no programa de auditório, lia os lábios, mas a marchinha estava ao fundo.

Tentou lembrar de algum amor do passado ou do presente. Nenhum. Quem ia querer aquele corpo cansado do tempo? E nem era tanto tempo assim. Longe de se aposentar. Tudo bem. Os cabelos, quando soltos, caíam para os lados encaracolados como se quisessem fugir. Alguns fios já brancos. Não valia a pena pintar, teria que deixar de pagar alguma coisa para comprar a tinta. Também não ligava para isso. Rosto largo e ombros finos não combinavam. Não teve filhos, teve menos preocupação. Teve marido. Ainda está em casa, mas é como se não tivesse mais. Mal trocavam algumas frases do tipo: o pó de café está acabando. E ela mesmo trazia de noite.

Mas a marchinha teimava. Como não sabia chorar, isso não lhe causava esta vontade. Depois de um tempo é que se lembrou que era época de carnaval. Deve ter escutado a música em algum lugar, quando passava, vindo no ônibus, da parada para a casa dos patrões. Não combinava com ela pois nunca tinha visto carnaval de perto. Nunca gostou de multidão, nem música alta. Só isso já bastava para ter um motivo para dormir mais cedo nessa época só para não ver nem as notícias do carnaval na TV.

Para ela, era uma marchinha triste, mas conhecida. Demorou-se um tempo maior do que o necessário para limpar as janelas para esperar escutar a marchinha fora de sua cabeça. Não ouvia nada. Era cedo para o carnaval talvez. Nenhum rádio ligado. Só se ouvia o barulho dos gritos do pano passando no vidro. Tentou cantarolar uma música do Roberto Carlos e se espantou com sua voz. Não estava acostumada a ouvi-la

Já estava começando a ficar angustiada com isso a ponto de soltar um suspiro longo.

Procurou agilizar o serviço para ir embora logo e ver se escutava coisas no caminho de volta para casa, mas o cansaço impedia de ir mais rápido que o necessário. Já tinha sido mais ágil outrora.

Procurou algo para comer. Mas até o barulho da torrada entre os dentes parecia dar melodia a marchinha triste. Acelerou a mastigação, diminuiu. Não adiantou. Conseguiu soltar um sorriso por causa da sua atitude mas logo voltou a angustiar-se. Se ao menos fosse uma letra alegre, de fantasia, de amor correspondido, de algum samba-enredo de escola de samba do Rio...

Mas não: “Bandeira branca, amor não posso mais. Pela saudade que me invade eu peço paz”.

Liz Hardt
Enviado por Liz Hardt em 26/01/2008
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