ZÉ DO IPÊ

Ainda estava lá o ipê amarelo, depois da curva bem acentuada era o susto da beleza a encher os olhos e exigir da mente uma qualquer interjeição. Ficava nas terras do seu tio e era referência de tudo por ali. Maurício teve um momento de túnel de tempo ao ver a árvore. Arregalou seus olhos deixando as íris de azul céu sem nuvens ainda mais coloridas. Passou a mão direita por sobre a cabeça jogando para trás os cabelos já um pouco grisalhos de franja rala como se esse ato afastasse a neve branca do tempo caída sobre os fios e fizesse o tempo voltar. E voltou. Voltou em eras bem remotas e teve a mesma sensação. Parece que as sensações do que vivemos não se perderam como imaginamos, mas ficam escondidas, dentro da gente . Elas estão associadas aos acontecimentos e quando eles vêm elas são retiradas de seus invólucros e dão o ar da graça. Certos gatilhos as fazem afloram. E o afloramento do ipê aflorou a mesma sensação dos tempos de menino e a mesma ideia de que a natureza faz poesia com essas coisas.

Diminuiu bastante a velocidade na curva, era preciso, pois aquele trecho da pequena estradinha de terra era muito perigoso e o fez também para apreciar melhor a árvore.

Logo apos a curva lá estava, com seus pequenos sinais de decrepitude, com a porteira carcomida, o mato quase impedindo a passagem, muito diferente do que já fora, sinalizado por uma plaquinhas que era quase impossível ler por causa das folhas das árvores que pediam sobre ela, o sitio do Ipê.

Desceu do carro e foi abrir a porteira, o avô nem se preocupava mais em passar cadeado naquilo. Sorriu feliz ao ver um desenho que havia feito ali no batente com seu pequeno canivetinho. Com letras bem traçadas a inicial de seu nome e a inicial do nome dela. A doce e bela Priscila. Agregada da fazenda, filha do caseiro que morava naquele barracão lá nos fundos da casa grande. Amor de infância. Em um dia qualquer entre os muitos na infinidade do louco trotar do tempo seu amor havia passado por aquela porteira, carregando malas, expectativas e dor, despejando tudo isso no último aceno... e deixando um coração despedaçado. Perdeu-se na infinidade desse mundo sem porteiras. Havia feito aquele desenho não apenas na porteira, mas também em arvores e em tudo o que encontrava. Tempos de muita esperança, impossível lembrar sem fazer o misto estranho de perda e de ternura. Sonhou muito em reencontrá-la, mas o sonho como tudo também se perdeu...

Passou com o carro, fechou a porteira e prosseguiu em baixíssima velocidade olhando e registrando tudo.

Em momento algum daquela viagem e também agora seus pensamentos acelerados não o deixavam um minuto, estavam remoendo coisas, fazendo renascer fantasmas, pelas estradas, pelas serras e pastos e agora ali no entrar na fazenda. O ranger daquela porteira soou como um triste lamento a aterradora sensação de um nunca mais, podia ver ali no chão havia cacos por todos os lados , reluzentes, espalhando reflexos sob o sol, apontando para a realidade. Algo havia se quebrado, sim, o chão estava coalhado de cacos.

Seguiu bem lento... olhava para todos os lados reconhecendo o lugar e encontrando em cada coisa uma historinha divertida ou triste, uma sucessão de lembranças, os pastos ao longe, o gado branco que lá estavam. Não eram mais do seu avô. O angico que existia bem no meio do pasto era testemunhas de travessuras tantas por aquelas terras em manhãs e tarde de alegrias e muita bagunça.

Notou que o mato estava invadindo o pequeno trilho onde sua Hillux passava, as ervas batiam na lataria do carro fazendo um barulho estranho. É, parece que não se cuida mais disso aqui como se cuidava naqueles tempos!

Parou um pouco porque os pensamentos o invadiam com tal velocidade que não conseguia coordená-los. Olhou demoradamente para tudo. Mudou muita coisa por ali depois da venda da maioria das terras. Até mesmo a nomenclatura do lugar, a centenária fazenda virou sitio do Ipé, da pompa, da riqueza e da glória de outros tempos sobrou apenas a árvore imponente que além de esbanjar a beleza amarelada atapetava de veludo o chão. Ela e a decadência de toda uma era estavam ali bem juntas.

Estacionou na pequena cobertinha, teve certa dificuldade para acomodar o veículo grande junto ao monte de tralhas e ferramentas que ali estavam penduradas.

O mato crescera por muitos outros lugares onde não deveria crescer.

Ainda não havia sido notado por ali. Nem tranca na porteira, nem cachorros que latem, nem ninguém atento à sua chegada. O mundo era parado e esquecido. Aproveitou isso para andar um pouco pela propriedade antes de entrar na casa. Não queria admitir, mas tinha receio. Entrar ali era descortinar o tempo, seria talvez um choque de realidade entre dois mundos. O de lá e o cá. Os tempos áureos e gloriosos e os de agora em condições bem mais precárias. Medo de entender o que já sabia, que o tempo corrói, desenlaça e degrada.

Afastou esses pensamentos enquanto fazia sua pequena turnê. Do lado da entrada da casa existia o paiol, foi até lá e continuava sendo fechado apenas pela pequena taramelinha. Abriu-o e a cena descortinou o passado de forma nítida e intensa. Ali estava ele escondido nos caibros. Era o primo mais custoso de todos se escondendo de Mariana, do Wandinho, do Renato e da Júlia. Era o esconde esconde, e agora as lembranças escondidas apareciam todas e cadê eles? Aqueles primos alegres? O silencio dos gritos feriu seus ouvidos, a ausência daquela alegria machucou bastante. Olhou para os cantos e lá estava a bacia. Ha por quantas vezes havia tomado banho nela... Algumas espigas de milho a um outro canto e muitos objetos daqueles tempos. Em algumas prateleiras estavam varas de pesca, moedores de café, panelinhas de ferro, a um canto ferramentas, machados, foices, a caixa das tranqueiras onde o avô guardado tudo o que achava em seu caminho dizendo que: um dia serve para alguma coisa. E o cheiro, o mesmo cheiro de palhas, de guardados, de baratas, de poeira tudo misturado. Aquele era o mais agradável dos perfumes.

Saiu de lá um pouco sufocado e foi andar pelo terreiro. Outros fantasmas o assaltaram: o menino que corria com um pequeno cata vento feito de folha de vargem e talo de mamão. Tio Osvaldo, irmão do avô que fumaça seu pequeno cigarro encostado ao quarador onde também havia outras panelinhas de barro. Vovó lavando roupa ali naquele tanque de cimento, lutando com os fios de cabelos bancos que escapavam do coque. Vovô contando as piadas e mudando algumas palavras por causa das crianças… o toco no quintal eram os restos do pé de manga. Cadê as grimpas por onde tantas vezes andara em pé, assustando a todos com a sua destreza? Subiu no toco e agora até para isso teve dificuldades. O agradável perfume do pé de funcho, das cebolinhas e do maracujá ainda emanava da aridez que os substituirá. Foi até o barranco do tobogã natural onde deslizava em grandes aventuras, ah era sim, para ele aquilo era um grande feito. Para o menino o mundo é grande e a infância é eterna. Ainda tinham os pés de banana, mas a plantação não mais. Tinha ali no quintal o mesmo relaxo da porteira destrancada e do mato invadindo os trilhos da chegada. Existia um cansaço rondando e trazida por ele agora também uma desilusão que cavalgava por todo aquele quintal montada no alazão da decadência e tentando no trotar também da decadência, reflorir o passado. Impossível.

A cisterna havia secado, era apenas um trambolho no meio do quintal. Sentiu por alguns instantes o gosto daquela água purinha na boca. Mel da imaginação a ludibriar.

O varal onde vovó estendia a roupa e colocava para secar as panelinhas de ferro após os fartos almoços de domingo feito no fogão à lenha, e que agora se encontravam lá no paiol, estava todo quebrado, a tela jogada ao chão.

Andou um pouco pelo quintal. Ninguém havia notado sua presença. Apanhou uma mexerica, chupou-a, ainda era gostosa, mas de novo, e aquilo era inevitável, e como tudo ali, o sumo da fruta ativou gatilhos. Nada podia escapar ao passado que rondava.

Não quis entrar pela porta da cozinha. Voltou até a entrada principal da casa.

Abriu o portão, que rangeu num gemido que parecia misturar lamento e acolhida. Até hoje não lubrificaram essas dobradiças? Safira já não rondava aquele terreiro, Sentiu falta dos afagos da cadela que estaria agora pulando de contentamento. Impossível não lembrar seus uivos de lamento atormentada pelas dores do câncer. Não havia mais nenhum cão de guarda por ali. Por que teria? Para proteger o que afinal?

Havia passado muito tempo. Sentia-se um ingrato, o filho pródigo fujão que se arrependia dos seus muitos erros e voltava. Com a tradicional insegurança da chegada, a eterna dúvida se seria ou não bem recebido.

A entrada na casa aquele vão entre o portão e a porta trouxe o tapa do pai na cara, evocou os gritos da briga e a fúria que o fizera fugir dali. E o arrependimento o esbofeteava agora. Teimosias de um jovem afoito e de um velho retrógrado. O pai morreu e levou consigo o perdão tão desejado. Agora é tarde…

A porta estava aberta, sempre estava, entrou e lá estava ele. Na mesma mesa de fórmica vermelha, na mesma cadeira pequena com almofada também vermelha, tateando de forma nervosa o chapéu de palha todo rasgado, na mesma postura um pouco curvada com os seus costumeiros ares de subserviência, de quem está sempre se desculpando por algo, com o seu jeito de sempre, com aqueles olhos azuis brilhantes, olhos lindos pensou, e que agora rodeados de rugas, traziam uma carga maior de tristeza. Ah essa vai se acumulando!

O som dos passos que aproximavam aquelas duas figuras, eram os únicos ruídos por ali. Parecia até que tudo tinha parado para presenciar aquele reencontro, como se fosse aqueles filmes antigos onde as cenas mais marcantes são marcadas pelo silêncio ou por uma música de suspense. Tudo esperava, o mundo espreitava para ver cair a primeira palavra daquela imensidão de sensações.

O velho alto, magro de barbas grandes brancas e amareladas, permaneceu ainda paralisado por alguns segundos, depois abriu um sorriso, um sorriso que não conseguia ser tão intenso quanto nos velhos tempos, trazia uma sombra de reservas e um medo de se entregar a alegria, apreensões típicas de um longo existir, mas era sim da melhor forma que ele poderia fazer, um sorriso de acolhimento.

E uma lágrima pareceu fazer desafinar aquela voz grave e soturna quando a satisfação se manifestou:

-Você veio! Eu sabia que vinha!

E não teve jeito, um abraço caloroso foi o fim daqueles poucos minutos de espera.

Depois se sentaram os dois no sofá rasgado da sala, as mesmas poltronas marrons com costuras em forma de quadrados e braços torneados em que ele havia pulado tantas vezes de uma para outra naquelas brincadeiras com os primos.

Por poucos instantes e antes que a conversa tivesse prosseguimento correu os olhos em volta e reconheceu bem o lugar, além de ser novamente assaltado pelos amigos gatilhos que faziam a alma chorar e sorrir. Sorrir das doces lembranças e chorar pelo que foi perdido no caminho. No centro da sala a mesma mesinha deixava sua marca de pés sobre o piso de taco. Na parede a estante também com seus retorcidos contornos exibia os mesmos bibelôs e enfeites. A tv ainda era a mesma, de tubo. E o aparelho de sons de caixas enormes se exibia lá do alto. Apesar do desgaste do tempo pouca coisa mudara no interior da casa. Os mesmos móveis dispostos nos mesmos lugares, as fotos, os quadros de santos pendurados. Devoção da vovó. O som dos inúmeros terços e ladainhas pareciam ainda ecoar por aquelas paredes brancas de pinturas descascadas.

Todo esse vagar pela casa durou apenas alguns segundos, foi acordado do devaneio pela voz do velho que o chamava.

-Mauricinho, você está longe aí, olhando para a casa, parece assustado.

- Estou apenas me lembrando vô. Aconteceu coisa demais por aqui.

–É!

-Como o senhor está?

-Eu vou levando e você está bem. Está feliz?

-Também vou levando, acho que a vida é assim a gente vai levanto - Existia ali algumas palavras escondidas, talvez reservadas ao medo e à indecisão. Uma explicação mais clara, um pedido de perdão, uma clareza de sentir que parecia difícil demais para ser alcançada. Então depois de tantos anos vamos ficar apenas nessas palavras amenas, na superfície? Não teremos um mergulho mais profundo?

-Estou bravo com você. Sumiu, tem quase vinte anos que não vem aqui. Era um rapazinho quando saiu e agora me volta homem feito.

-Eu queria ter vindo antes. Eu devia ter vindo quando a vovó morreu, mas aconteceu tanta coisa, minha vida tava de cabeça para baixo, eu não tinha dinheiro e também eu sabia que quando entrasse aqui a cena voltaria como voltou. A briga com meu pai, a gritaria daquele dia, mamãe chorando. Sabe que essa briga foi o motivo do avc dela. Então eu relutei muito, mas aqui estou.

-Sabe que depois daquele dia, isso aqui acabou? Nunca foi mais o mesmo. Seu pai ficou de mau de todo mundo, brigou comigo, com o Cláudio, também nunca mais voltou. E a família acabou filho. Me deixaram aqui quase que abandonado. Depois foram morrendo um a um. O Claudio, a esposa deles e seus primos, aquele acidente de carro foi a grande tragédia da nossa família. Seu pai, sua mãe, sua avó… fui perdendo todos um a um. Só ficou você meu único neto, o último pedacinho de família que me resta. Eu fali, perdi o gosto por tudo, parei de cuidar e a fazenda que hoje virou sítio foi acabando. Secando em rugas de abandono como eu aqui enrugado e velho.

-Se eu fui o culpado por tudo. Vô me perdoa. Perdoa por ter causado aquilo, por não ter voltado aqui, por tudo.

- Não se culpe, eu falei brincando, nunca culpei você. Seu pai é que era cabeça dura e não conseguia entender as coisas. Ele traia sua mãe, fazia coisas erradas, ele espancava funcionários, mandava bater nos seus devedores, ah aquela coisa da agiotagem, aquilo sempre foi uma desgraça. Você apenas se manifestou contra as coisas horríveis que ele fazia. Algumas nem quero mencionar. O problema dessa família sempre foi ele. Me desculpe, mas é verdade.

-Sim, mas acho que eu também fui longe demais, eu não devia ter dito tantas coisas. E apesar de tudo eu sempre quis me reconciliar com ele. Mas não tive coragem. Soube que ele mudou muito, quando faleceu, era bem diferente daquele homem que me esbofeteou aqui, mas sabe como é, a gente é teimoso o orgulho as vezes fala mais alto e eu não dei o famoso e necessário primeiro passo. Ele morreu sem me perdoar e sem me pedir perdão. Isso me dói muito.

-Dores, vamos acumulando meu filho, é assim mesmo, não tem como chegar a idades avançadas sem tê-las todas aqui, fantasmas a nos atormentar nas madrugadas e ditar as amarguras do viver.

A tarde rolou entre risos choros, lembranças, uma gostosa broa de milho com café e um clima delicioso de aconchego e reconciliação. O que estava quebrado não seria colado, restava apenas seguir em frente da melhor forma possível, juntando os cacos pelo chão.

Doía muito a Maurício ver a decadência do lugar, sentir a mão do tempo avançando sobre o rosto do velho, sobre o cenário que fora de alegria e de uma infância maravilhosa, sobre tudo. Doía também ver o abandono do sucesso, da riqueza e da bonança. Eles se foram e deixaram aquela casa entregue aos cuidados da decrepitude. Mas naquela tarde apesar de toda a dor, percebeu num dado momento que essas riquezas não eram tão importantes assim.

E o fim da visita com sabor de passado e reconciliação chegou ao fim.

-Pois é Seu Zé do ipê, foi muito bom estar aqui. Uma alegria, mas eu vou indo vô. Tenho que voltar, tenho compromissos, Mas eu volto aqui para ver o senhor. Vou vir aqui muitas vezes, nós vamos juntos reconstruir esse lugar.

-Você vai vir para ver a casa. Não me resta muito, sei que o fim está muito próximo. É a última vez que nos vemos eu sinto isso.

-Não fala assim!

- Lamento muitas coisas, me alegro por outras. Ganhei e perdi muito. Mas a vida é assim. Me tomou tudo e devolveu.

-Agora eu não entendi vô, mas o senhor não vai morrer, não agora, viveremos juntos ainda por muitos anos. Vamos transformar esse sítio abandonado numa fazenda bonita produtiva. Levanta a cabeça, anime-se estamos juntos de novo. O Senhor não sonha em se reerguer, em retomar sua riqueza?

- Hoje ela veio todinha de volta para mim.

Minutos depois, sob a vigilância do eterno ipê amarelo que reforçava o dourado do crepúsculo tão belo e triste, já em cumprimento àquela nefasta previsão, o último aceno da janela do carro.