Margarida
Vivia entre o céu e o inferno. Não encontrava paz. No dealbar da vida adulta fora marcada pela tragédia e não se conseguia perdoar. Talvez por isso se tenha refugiado na vida religiosa, na beatice. Afinal, Cristo era a imagem do sofrimento eterno por todos os pecados da humanidade e Margarida sentia particular afinidade com esse ato de amor maior, porque, também ela, carregava em si o peso do mundo e, de certa forma, vivia diariamente a sua paixão, como Jesus, carregando uma cruz pesada na sua caminhada interior.
Com o passar dos anos, esta afinidade, qual Narciso, levou-a a acreditar que também ela tinha em si algo de divino e que existiria um desígnio muito maior para a sua existência. Assim, imbuída deste espírito, como Maria, encontrou o seu José e com ele casou, não descansando até que também ele se tornasse um homem de Deus, da religião.
Margarida e José tiveram dois filhos e, em boa verdade, foram felizes durante algum tempo. Eram o exemplo da paróquia, situada num bairro de classe média-alta no centro da cidade, ele abraçou o diaconato e juntos abraçaram a causa religiosa no seio da família paroquial, ajudando os novos e os velhos casais paroquianos, através dos seus ensinamentos e experiência na vida cristã.
Mas o inexorável passar do tempo começou a trazer os primeiros sinais de tempestade no horizonte de um casamento e uma vida abençoada, acreditava ela, por Deus. José já não despertava o brilho nos olhos de Margarida e, em boa verdade, esta também já não era a luz dos olhos de José. Mas eram o casal perfeito, todos os admiravam e eles sentiam que não podiam desiludir os outros e, sobretudo, a Igreja.
E foram-se afastando, José trabalhava cada vez até mais tarde, procurava desculpas para passar a maior parte do tempo fora de casa, ainda que, dizia ele, em trabalho. Por sua vez, Margarida voltara a sentir o peso da sua cruz e acreditava que tinha de materializar a sua tal vocação para o divino, trazendo luz à vida de alguém que vivesse nas trevas, longe do Senhor.
Até que, certo dia, ela viu-o. Fausto era um homem diferente, extrovertido e que dizia aos sete ventos que não acreditava no amor e no casamento. A vida, ao que Margarida apurara, tinha-lhe sido muito dura, vivia um segundo casamento falhado, depois de um primeiro que também caíra pelo precipício. No fundo, aos olhos de Margarida, estava ali a sua missão de vida, o seu encontro com a vocação divina que há tanto tempo ela se auto profetizara - Fausto vivia nas trevas e Margarida decidiu que seria ela a resgatá-lo das garras de Mefistófeles, trazendo-o à luz do Senhor.
Nesta senda, na ânsia materializar sua vocação divina, para, quiçá, apaziguar os demónios que a atormentavam pela tragédia que a traumatizara no começo da idade adulta, Margarida foi-se aproximando de Fausto e foi-o conhecendo melhor. Com o tempo, foi vendo nele um homem que a atraía, uma tentação carnal que se sentia impelida a satisfazer, parecia que Mefistófeles se vingava dela por se aproximar de Fausto e querer afastá-lo das trevas, trazendo-o para o caminho da salvação.
Fausto, por sua vez, era um homem desprovido de crenças limitantes e, apesar de dois casamentos falhados, ainda que contra a sua vontade, talvez pelos seus medos, voltou a acreditar no amor, ou na sua possibilidade, e começou, também ele a desejar Margarida.
Escusado será dizer que não demorou muito tempo até que Margarida e Fausto se entregassem ao desejo, ele completamente agrilhoado por um sentimento maior, a que chamava amor, e ela, atraída pela ideia do fruto proibido, já nem se preocupava com a sua suposta vocação divina, ou melhor, achava que ela se materializava através do sexo proibido, libertando-a dos seus demónios.
E o tempo foi passando. Margarida e Fausto, deslumbrados pela química e a física que existia entre eles e os ligava, foram-se tornando descuidados e a relação, que até então era secreta, foi ficando, paulatinamente, visível aos olhos de todos. Margarida começou a sentir-se ameaçada, parecia que encontrava olhares acusadores em todos os cantos, por sua vez, Fausto não queria viver escondido, afinal, voltara a acreditar na possibilidade do amor e de reencontrar a felicidade ao lado de alguém.
Mas esta relação estava fadada à desgraça, onde ela só queria aventura e sexo, ele procurava sentimento e compromisso. Estava tudo trocado, ele, homem, que deveria ser de Marte, era, afinal, um nativo de Vénus, e ela, mulher, que deveria ser uma nativa de Vénus, era, em boa verdade, uma convicta cidadã de Marte.
Ainda viveram assim alguns anos, com cada um, no fim do dia, a regressar a uma vida de aparências, até que Fausto se cansou de continuar a viver uma relação, aos seus olhos, sentimentalmente insuficiente e Margarida, por sua vez, quem sabe movida por uma profunda religiosidade, decidiu que era chegada a hora de procurar novamente aliviar a sua cruz com um outro alguém, idealmente, necessitado de salvação também.