Pipa

Era uma verdadeira princesa, mas não o reconhecia. Abandonada pela mãe em tenra idade, conjuntamente com o seu irmão, ficou aos cuidados do pai, que, apesar das muitas dificuldades, tudo fez para que nada lhe faltasse, a ela e ao irmão, de seu nome Zacarias.

Pipa não teve uma infância e adolescência fáceis, sentia-se menos, comparava-se com os outros, como se, aos seus olhos, ficasse sempre aquém do outro. Uma mãe é insubstituível na vida de uma criança e Pipa sofria do mal de ter perdido esse referencial. O pai desdobrava-se, entre o trabalho e, mais tarde, uma nova relação falhada, para assegurar que nada faltava a Pipa e a Zacarias, mas, no fim do dia, havia sempre algo em falta, a presença de uma mãe.

O tempo foi passando e Pipa não conseguia suprir essa ausência de mãe, nem os esforços e o amor do pai e dos avós a fazia esquecer esse abismo que ela mirava. É certo que o pai refizera a vida ao lado de Joana, mas esta nunca fizera um esforço para chegar a Pipa e, em boa verdade, Pipa também nunca fizera questão dessa aproximação, talvez por isso nunca tenha dado um passo em direção a Joana.

Assim, desde cedo, Pipa, achando-se insuficiente para os outros e para o mundo, foi aceitando amizades rasas e relações de escassez, que só serviram para dilacerar a sua alma e alimentar a baixa auto-estima que foi crescendo com o tempo. Mas, apesar das tempestades interiores que a atormentavam, perante o pai e os avós, Pipa mostrava-se feliz e confiante, porque, no fim do dia, sentia que contar a verdade seria desapontar os seus avós e, sobretudo, o seu pai.

Mas a verdade é que, como alguém escreveu um dia, ninguém consegue enganar-se a si e aos outros o tempo inteiro, e Pipa começou a ficar impaciente. Só lhe apetecia fugir, largar tudo, sair… sem satisfações a quem quer que seja. Mas não queria magoar ninguém, muito menos o seu pai. Era um dilema, se por um lado, Pipa sentia-se compelida a seguir o seu coração, que lhe pedia para partir e, como Orfeu, sem olhar para trás, por outro, não queria fazer sofrer aqueles que a haviam criado

Não poucas vezes na vida, quando o sofrimento ou o medo tomam conta de nós, tendemos a reagir e a tomar decisões sem olharmos para trás, independentemente das consequências que daí advenham. E foi o que aconteceu com Pipa, afinal, quando se quer muito algo, encontra-se sempre um caminho para materializar o objeto do desejo.

Começou tudo como uma ideia absurda, numa conversa com Luísa, amiga com quem trabalhava numa associação de voluntariado, Pipa confessara o tormento em que vivia e a vontade de partir que a assolava. E Luísa, assim, de repente, do alto da sua longa experiência de vida, com dezoito primaveras contadas, e cheia de vontade de partir e conhecer o mundo, ou não, propusera-lhe inventarem uma viagem, que diriam ser feita a expensas da associação onde trabalhavam como voluntárias. Era um plano perfeito, dizia Luísa, forjariam papeladas e enganariam todos à sua volta, mas Pipa poderia assim partir, sem ter de se preocupar com o peso das despedidas, das justificações e das desilusões certas que daí adviriam.

E assim foi, Pipa partiu e a família despediu-se dela como quem diz até já. Mas não era um até já, era um adeus… que só descobriram duas semanas depois, quando Pipa decidira mandar ao pai uma foto, retirada de uma revista, do suposto local onde estaria a estagiar. E foi uma verdadeira tragédia, arriscaria dizer grega, porque quando a verdade assume as rédeas da ação, a mentira começa a desmoronar-se - o pai, ao ver a foto, tendo, por um acaso da vida, lido aquela mesma edição da revista, percebera a mentira, ligara a Pipa e esta , depois de muito argumentar, lá confessara que, afinal, nunca partira.

Por sua vez, Pipa, tomando consciência da gravidade do caminho que seguira e, como se diz na gíria, empurrando os problemas com a barriga para a frente, decidira procurar refúgio junto da mãe, com quem não convivia há mais de uma década, como que querendo preencher aquele vazio com que crescera - o mundo estava do avesso, quem cuidara e criara, enganado pela mentira, vira-se, de repente, sem filha e, não menos importante, qualquer justificação para toda aquela tempestade que se abatera sobre a sua vida.

A princípio, Pipa encontrou na mãe uma amiga e parceira de aventuras. A vida em casa do pai sempre fora mais regrada e Pipa sentia que podia agora, finalmente, viver livremente. E assim viveu, até ao dia em que as dificuldades começaram a chegar - pressionada pela mãe, Pipa, que sempre fora criada como uma princesa, deixara de poder viver do voluntariado e precisava agora de meios para a sua subsistência.

Assim, onde antes fora um idílio com a mãe, começaram a chegar os primeiros sinais de tempestade e Pipa, compelida pela sua enorme vontade de independência, abandonou tudo, mais uma vez, e partiu na sua odisseia, em busca dessa terra, que se prometera, onde encontraria, por fim, a liberdade e a abundância que tanto queria.

Vagueou, assim, durante dois anos, sofrendo tormentas e sujeitando-se a situações que a razão não consegue explicar. Foi enganada e maltratada, a vida ensinava-lhe, da pior maneira, o valor do amor e do cuidado daqueles que realmente nos querem bem.

E foi num desses momentos, maltratada pela vida e pelas circunstâncias, que, em lágrimas, percebeu, finalmente, que sempre fora amada e cuidada pelo seu pai e os seus avós e que, no fim do dia, nada lhe faltara, apesar da ausência de mãe.

Decidiu, então, que nunca mais voltaria a aceitar amizades rasas e relações de escassez, e que, doravante, iria amar-se todos os dias, porque, afinal, sempre fora feliz, e não sabia - tinha no mundo quem se preocupava com ela e a receberia de volta, como aconteceu.

Nuno Santos
Enviado por Nuno Santos em 29/08/2024
Reeditado em 29/08/2024
Código do texto: T8139758
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