Bode expiatório
Cinco horas da tarde. Estava voltando por aquelas paragens onde tinha ido caçar. O sol já começava a se despedir do dia naquele tom alaranjado tão característico. Poderia ser um fim de tarde para se guardar nas retinas como uma tarde feliz. Mas não para aquele rapaz. Todos na cidade sabiam do temperamento daquele homem. Mas ninguém queria se envolver. Até quando teríamos de tolerar a violência doméstica?
Coitada daquela mãe que nada podia fazer quanto aos desmandos do marido. Aquele desalmado. Todos tinham pena deles. Da maneira como ela e os filhos eram tratados.
Não era a primeira vez, o jovem já devia estar acostumado com aquelas explosões de raiva que terminavam em crueldade. Me escondi atrás de uma grande árvore e vi que eles haviam caminhado um bom pedaço de terra íngreme, e já se aproximavam de um local ermo, solitário, escondido.
De onde estava, eu já podia ouvir o som vibrante e áspero do cinturão sendo puxado da cintura daquele velhaco e pousando no corpo magricela do jovem que se contorcia de dor, tentando se livrar daquele sofrimento. No entanto, seu corpo e sua pele parecia já preparados para o que ainda estava por vir.
Ele sabia que não ficaria apena na primeira chibatada. Outras viriam. Escondido, eu via o quanto seu corpo se retesava para esperar as próximas. Aquilo me deixava endoidecido de raiva. Mas eu não podia fazer nada. Ninguém poderia se meter. Não existia ainda lei nenhuma que protegesse crianças e jovens da violência doméstica. Os pais tinham todo o direito de “educar” os filhos à sua maneira.
O zunido do cinturão no ar continuava a massacrar a pele daquele jovem infeliz. Sua pele se enrijecia ao ser açoitada sem piedade uma, duas, três, quatro... vezes. Até o instante em que o próprio desalmado não aguentasse. De longe eu podia ouvir os gritos de dor do rapaz. Repentinamente, o silêncio reinava no desacampado, enquanto a respiração do agressor diminuía. “Acabou, graças a Deus”. Pensei comigo mesmo.
Ouvi os passos do pai se afastando. Vi quando o jovem tentou levantar-se e aos poucos acompanhava o agressor, sempre uns passos atrás. Seu corpo sangrava.
Ele sabia das dificuldades que a família enfrentava, no entanto não compreendia e nem se conformava em ser o bode expiatório pelos fracassos do pai.
Em tcasa, mãe e irmãos deviam estar rezando para que tudo acabasse logo, como sempre, assustados e preocupados. O recado para o farmacêutico da pequena cidade já devia ter sido enviado
A porta estava aberta. Ele entrou e desabou nos braços da mãe.