Hotel Icónico
Hotel Icónico
Há uns tempos que não os via por estas bandas, mas ultimamente têm aparecido.. e eu chego a pensar que o caso é complicado, daqueles que uma pessoa pensa se dever livrar mas não consegue.
Já lá vão uns dez anos que não os via, mas estão perfeitamente reconhecíveis. Claro que a vida já lhes desenhou uns traços no rosto, e é claro que também já tenho a arte do tempo no rosto, além de mais andava tão farta desta cidade que decidi mudar de ares. há sempre tanto lugar para ver e tanta coisa para fazer que é difícil mantermo-nos fieis aos mesmos sítios, sempre que nos apetece parar, beber um café e absorver o dia.
Contudo, esta esplanada sempre foi a minha preferida. No centro da cidade, numa rua mais ou menos calma virada para a entrada de um dos hotéis icónicos. Dizem que muitas histórias de paixões tórridas se viveram, num genial jogo de escondidas entre uma senhora do Alentejo de nome Florbela e outros figuras um tanto discretas, dentro daquela paredes. Que negócios e negociatas, mais ou menos (i)lícitos foram forjados no bar e nas salas de reuniões... enfim.... a titulo de curiosidade e para colmatar esta falta de o que fazer, esta ociosidade que a idade agora me permite, gostava de saber as historias todas, imagino o livro de registos terá metros e metros de nomes...
Mas estes dois, deixam-me a pensar. É quase como se eu mesmo sentisse o que lhes vai na alma. Sinto a emoção que eles trazem escondida no peito como se fosse uma dúzia de ovos mexidos acabados de fazer.
A primeira vez que os vi, sentaram-se aqui na esplanada da pastelaria.
Ele chegou primeiro, logo a seguir chegou ela. Cego pelo brilho no olhar que ela lhe atirou, fingiu estar calmo, mas eu reparei na forma como ele apertava as mãos. Ela, fresca e perfumada, deixou emanar o desejo que lhe toldava o pensamento.... respirou fundo. Sentou-se, cruzou a perna, encostou-se para trás e sorriu. Tinha as sandálias às tiras que sabia que ele gostava... por baixo de um dos cantos da mesa tocou-lhe sem querer (querendo) com a ponta do pé na perna. Só depois reparei que lhe tremeram as pernas quando ele deixou cair a chave no chão...
Pediram o café, pouco verbalizaram, mas como era de fogo o que diziam um ao outro.
Depois pedi o meu café e um copo com gelo, para fazer capilé, que com o calor que fazia; cafeína sim, mas quente, não. Ao sorver o primeiro gole daquela bebida improvisada, sorri e lembrei-me que aquele era o refresco favorito dos meus pais, quando estávamos todos em África.
Paguei, sorri para a empregada:
"Então agora vai estar por cá uns tempinhos?"
"Parece-me que sim, desta vez, fico até ao inverno chegar"
Quando olhei para o fundo da esplanada , já não os vi... encostei-me para trás e deixei que a cafeína do capilé me refrescasse o coração.
Reparei que a porta rotativa do hotel em frente tinha revirado, a nível do chão o brilho de uma sandália de fitinhas douras, no vidro das portas, o reflexo de um beijo apaixonado.
Sorri... afinal ainda há amantes e amados que perpetuam os episódios das paredes daquele edifício.
Por entre os prédios, alguns raios de sol beijaram-me o rosto.
descruzei a perna, pousei o pé, também ele tapado com tirinhas, e levantei-me.
Tirado de Um Conto.
Ventos Sábios - Ruth Collaço (R)