O Edifício Caroço de Abacate
Tudo é uma questão de ótica.
Quando me mudei para o apartamento 204 do Edifício Caroço de Abacate, tive uma das melhores experiências possíveis. Em cada andar, eram quatro apartamentos, esse edifício tinha uma curiosidade: a maioria dos moradores eram idosos.
Como eu disse, me mudei para o apartamento 204, de frente para o meu era o 202, era de uma senhora que ninguém gostava dela, diziam que era muito rabugenta, chata e que vivia arrumando confusão com todos, já fiquei de orelha em pé, mas não dei muita atenção.
No dia da minha mudança, ela apareceu na porta do seu apartamento, realmente não tinha cara de muitos amigos, um semblante fechado, mas percebi que ela era muito bonita, bem vestida, cabelos grisalhos curtos, usava roupas coloridas, pulseiras, dei bom dia e levei com a porta na cara.
Trabalhava de casa, na maioria das vezes eu deixava a porta encostada, com uma pequena fresta para a ventilação, percebi que a porta da vizinha sempre se abria algumas vezes ao dia, mas não disse nada.
Certo dia, estava descendo com o lixo e encontrei a senhora do 203, super simpática e ela me disse:
- Você já conheceu a Edith?
- A minha vizinha de frente?
- Isso mesmo.
- No dia que estava mudando, ela estava na porta da casa dela, eu passei, dei bom dia e levei com a porta na cara.
- Típico da Edith.
Os dias passaram e eu comecei a perceber que todos os dias de manhã aparecia um saco de lixo na minha porta, fiquei um pouco incomodado com aquilo e fui procurar saber, os vizinhos me disseram que era trabalho da Edith, que ela começava as implicâncias dela com as pessoas assim, não dei importância, pois não me custava levar o lixo já que eu descia para levar o meu. Algumas semanas se passaram e eu percebi que minha porta ficava molhada além do saco de lixo, os vizinhos disseram que era coisa da Edith. Decidi bater na porta da casa dela e saber porque ela estava fazendo aquilo.
- Bom dia, Senhora Edith!
- O que você quer na minha porta?
- Quero saber porque além do saco de lixo que a senhora coloca ali todos os dias, agora está molhando minha porta também? Eu já reclamei com o síndico e meu próximo passo é ir a delegacia fazer um boletim de ocorrência contra a senhora, nunca lhe fiz nada, não lhe conheço, procuro ser educado com todos.
- Faça o que você quiser.
- Esteja avisada, Senhora Edith.
Fui procurar saber mais sobre essa simpática senhora e todos falavam por uma boca só que era uma encrenqueira, nunca tratava ninguém bem.
Decidi ficar esperando ela colocar o lixo e jogar a água na minha porta. Dito e feito, quando ela chegou com o saco de lixo e a garrafa com água , eu abri a porta e dei o flagrante, perguntei porque ela estava fazendo aquilo, a confrontei, chamei o síndico, os vizinhos saíram para olhar e eu comecei a falar bem alto, ela não falou nada, simplesmente entrou para sua casa e fechou a porta.
Fiquei preocupado com essa senhora e com suas ações, bati de novo na porta do seu apartamento e dessa vez encontrei uma senhora abatida, com olhos de quem esteve chorando. Perguntei de novo porque ela fazia aquilo, se eu tinha falado ou feito algo que a ofendeu, qual não foi minha surpresa o convite dela para entrar em seu apartamento.
Nunca vi um lugar tão bem decorado e tão organizado. Nas paredes, fotos e quadros de um passado feliz, uma mesa com quatro lugares, móveis que apesar de antigos, estavam muito bem conservados. Ela me convidou a sentar, eu estava super desconfiado e ela disse:
- Senhor Nicolas, peço desculpas pelo meu comportamento, todos aqui do prédio conhecem uma Edith velha e rabugenta que implica com tudo e com todos, mas quero que o senhor saiba que eu não sou assim, fui casada durante 50 anos e vivi muito feliz durante todo esse tempo, meu esposo faleceu a algum tempo , dessa união maravilhosa eu tive apenas uma filha, a Carmem, linda, educada, gentil, eu sempre morei nesse edifício, mesmo antes de me casar, sempre trabalhei, tinha minha vida muito ativa, quando me casei, decidi continuar por aqui, conheço todos os moradores, vivi os melhores e mais alegres momentos de minha vida dentro desse apartamento, depois que fiquei viúva, minha filha veio morar comigo, esse apartamento onde o senhor mora agora era de minha propriedade e eu dei para minha filha morar, ela não quis se casar, estudava, trabalhava e tinha sua vida, todos os dias quando chegava, ela passava aqui em casa e eu fazia um chá de hortelã, conversávamos sobre o dia e depois ela ia para sua casa.
- Porque a senhora esta me contando essa estória?
- Deixe-me continuar - Certo dia, recebi um telefonema do departamento de polícia local e eles me disseram que minha filha estava no hospital, havia sofrido um acidente grave, peguei minha bolsa e fui para o hospital. Quando cheguei lá, me identifiquei e eles me levaram até onde minha filha estava, me aproximei de seu leito, em prantos, ela era a única coisa que me dava alegria, ela olhou em meus olhos, pegou minha mão com o pouco de forças que ainda lhe restava, esboçou um sorriso e morreu.
- Senhora Edith que estória mais triste.
- Depois do falecimento de minha filha, do seu funeral, a pior parte foi me desfazer de todas as suas coisas, eu chorava todos os dias, tinha perdido duas partes de minha vida, tirei forças não sei de onde, desmontei todo o apartamento, vendi algumas coisas dela e outras foram para doação e vendi o apartamento, que a propósito foi o senhor quem comprou, desse dia para cá, me fechei em meu casulo, me tornei uma pessoa tão amarga e rabugenta que minha arma para não me aproximar das pessoas era ser o que o senhor conheceu.
- Eu a compreendo, Senhora Edith, não é fácil lhe dar com situações de morte.
- Todos os dias quando abro a porta da minha casa, vejo minha filha parada na porta de sua casa, me olhando e sorrindo, como posso conviver com isso?
- Olha, Senhora Edith, eu não sei o que posso fazer para ajuda-la, mas continuar sendo desse jeito eu tenho certeza que não vai adiantar, a senhora tem que voltar a ser aquela pessoa amável que sempre foi, sua filha e seu esposo iriam gostar demais disso.
- Eu decidi lhe contar tudo isso porque não estou aguentando mais, estou me sentindo sufocada e vi no senhor uma pessoa boa, percebi que poderia lhe falar sobre um pouco da minha vida e lhe confesso que estou me sentindo bem melhor, carregar toda essa dor não está me fazendo bem.
- Se a senhora me permite, eu gostaria de dar uma ideia.
- Pode me chamar apenas de Edith.
- Então Edith, podemos fazer uma confraternização aqui no prédio, aposto que as pessoas vão gostar demais.
- Eu aceito a ideia e ficarei muito feliz de me desculpar com todos pela minha falta de educação, as pessoas aqui conheceram outra Edith e não essa aqui.
Bem gente, foi organizado uma recepção no salão do Edifício Caroço de Abacate, qual não foi a surpresa dos moradores quando receberam o convite e viram quem era a remetente, a recepção foi um grande sucesso, as pessoas chegavam e vinham logo falar com a Edith, ficaram felizes em ter a amiga de volta e todos já sabiam da estória de vida dela, por isso as pessoas não falavam nada.
O que nos falta é conhecer um pouco das pessoas, as vezes elas só querem alguém para conversar, desabafar, vamos amar mais e julgar menos.