O PODER DE UM SONHO
Dr. Pedro Paulo exerce a dupla função de Juiz titular numa comarca do interior do estado e professor de direito. Como magistrado, é respeitadíssimo por sua integridade e sabedoria. Jamais se recusa receber com simpatia e generosidade alguém que lhe procure em busca de conselhos ou de qualquer outro tipo de informação.
Na faculdade, para seus alunos que o admiram e o respeitam, é o mestre, o guru, o maior...
Ele ama irrestritamente, apaixonadamente suas duas profissões. A primeira, por ser o que sempre desejou para sua vida desde a mais tenra idade. É a realização de seu maior, mais rico e persistente sonho. A segunda ele aprendeu a amar no exercício do próprio fazer pedagógico. Sua paixão pelo magistério transborda de todos os seus gestos na relação com seus alunos, razão por que suas aulas são mágicas e contagiantes.
Dr. Pedro Paulo é um homem realizado e feliz. Faz o que ama, mora numa casa confortável, tem uma esposa linda, dedicada, também professora universitária e dois filhos adoráveis. Mais do que pediu a Deus, pensa.
Nem sempre foi assim, nem sempre foi feliz, nem sempre teve um lar. Seu único bem, desde a infância até grande parte de sua juventude, foi aquele sonho, forte, hercúleo, teimoso, de força e de fé. Era ele, o sonho indomável, que o mantinha agarrado à vida e o motivava a continuar, mesmo, muitas vezes, contra suas próprias expectativas. As lembranças, que vez por outra o remetem ao passado, não lhe trazem de lá mal algum. Pelo contrário, são elas que lhe imprimem na mente a certeza de que só é o homem realizado e feliz que é, em razão do que foi e de tudo o que viveu. Então, agradece, por ter trilhado o duro caminho que o forjou. No entanto para, pensa e, de repente, está novamente lá, naquele dia 25 de outubro:
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O fórum estava movimentado. Ninguém queria perder o júri tão comentado nos últimos meses. Havia um guarda na porta, no topo da grande escada. Algumas pessoas ele não permitia entrar sem que lhe respondessem certas perguntas; outras, no entanto, entravam direto. Pedro Paulo estava lá, ao lado do primeiro degrau da escada, receoso. Fazia gesto de que subiria, mas refreava o impulso. O guarda provavelmente não lhe permitiria adentrar o recinto, pensava; mas ele precisava assistir aquele júri, queria ver, aprender. Quando os estudantes de direito chegaram portando suas pastas da faculdade e começaram a subir, ele criou coragem, também portava uma pasta de direito abarrotada. Meteu-se no meio e foi subindo. Não passou pelo guarda:
- A onde pensas que vais, imundície?
- Vou assistir ao júri, como todo mundo, ué!
- Negativo. Não te enxergas? Tu és um mendigo, moras num escombro, estás fedendo. Pareces um rato fedorento. Anda, fora daqui!
Ato contínuo, arrancou a pasta velha, já sem zíper, que Pedro Paulo carregava e a atirou escada abaixo. A papelada, da qual ela estava cheia, inclusive dois livros, espalharam-se pelos degraus. Pedro Paulo encolheu-se, encheu os olhos de lágrimas, todavia dispôs-se a recolher seu material. Um senhor que subia com a esposa, ante a situação humilhante a que o pobre fora exposto, solidário passou a auxiliá-lo na tarefa. Observou, no entanto, que o rapaz chorava silenciosamente e lhe perguntou:
- Por que desejas assistir ao júri? E o que significam esses papéis?
- Meu nome é Pedro Paulo, moro ali nos escombros daquele prédio que caiu há bastante tempo. Uma parede ficou com uma parte suspensa sobre um muro de pedra e eu vivo embaixo. Esses papéis são sobre direito, que cato no lixo do fórum, onde também encontrei um código penal e um civil, ambos já velhos. São meus livros de estudo. Um dia quero ser juiz.
- Ah, entendi... para seres juiz, precisas antes frequentar uma faculdade de direito, te formares e depois seres aprovado num concurso específico. Agora preciso entrar. Outra hora irei falar contigo, quero te conhecer melhor. Combinado? Meu nome é Renato.
- Muito obrigado, Senhor Renato! Ficarei esperando o senhor.
Senhor Renato subiu os últimos degraus e Pedro Paulo retirou-se caminhando lentamente. Seguia triste, cabisbaixo, já acreditando que perseguia um sonho inalcançável, como vaticinaram seus tios. A não ser que um milagre acontecesse, e ele não acreditava em milagres. No entanto este sonho era a única coisa que lhe restava, se o deixasse morrer, melhor seria que morresse junto. Assim envolvido, revisitou o dia em que o grande sonho nascera. Ele tinha sete anos. Seu pai o levara ao fórum e ele vira um homem vestido com a capa preta. Após saber quem era e o que fazia, tomou uma decisão: seria juiz.
Um mês depois, seus pais morreram num acidente e o sonho sofreu um abalo. Passou a viver sob a guarda dos tios, que lhe consideravam um estorvo. Foi aí que as experiências dolorosas tiveram início: um dia na casa de um, outro dia na casa de outro, continuamente maltratado e xingado com apelidos depreciativos. Quando retrucava dizendo que um dia seria juiz, riam, debochavam, esfregavam-lhe na cara que nunca seria nada, porque era burro. Escondia-se para chorar. A saudade dos pais doía-lhe na alma, mas o sonho de ser juiz empurrava-o para frente. Só Deus sabe por quantas humilhações passara, até terminar o ensino fundamental e o médio. Depois foi ainda pior, porque puseram-no inapelavelmente para fora de casa. Já tinha 15 anos, podia se virar sozinho, disseram. Sem alternativa, acabou ficando na rua mesmo. A procura de um local onde pudesse passar alguns dias o levou aos arredores do fórum, onde encontrou os escombros e neles fez sua morada. Há dois anos vivia ali. Durante esse tempo, alimentou-se do sonho. Todavia durante as noites insones e bolorentas de sua toca, alma indizivelmente ferida, punha-se a caminhar à orla do mar. Sentava-se, olhar pregado no infinito das águas. A briga entre o sonho e o ímpeto de afogá-lo naquelas profundezas era inevitável. Mas o sonho, teimoso e forte, encravado lá nos confins de sua mente, ganhava sempre e ele pagava a conta, preso àquele arremedo de vida.
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Três dias depois que fora expulso do fórum, Senhor Renato o procurou:
- Olá, Pedro Paulo, bom dia! Vamos conversar?
- Bom dia, Senhor Renato!
- Gostei de ti, por isso vim te trazer um novo alento.
- O Senhor é generoso; no entanto já estou prestes a enterrar minhas esperanças. Depois do que o guarda fez comigo, acordei; consegui ver o quão distante estou dessa realização. Passei realmente a acreditar que jamais serei coisa alguma. Outro dia deixaram-me entrar em um local onde um professor falava a um grupo de alunos de pedagogia. Ensinava-lhes que quando se diz a uma criança que ela é burra e que nunca será nada, o cérebro registra como verdade e executa. Meus tios fizeram isso comigo, agora entendi. Meu sonho maluco é que está me fazendo dar murros em ponta de faca.
- O professor de pedagogia está certo apenas em parte, porque um sonho tão grande quanto esse que te trouxe até aqui, supera qualquer obstáculo. Foi ele que te fez acreditar, todo esse tempo, que as possibilidades nunca deixam de existir. Enquanto há sonho, há vida e esperança, mesmo que tudo te faça, por vezes, pensar o contrário. Posso te ajudar nessa busca.
- Como?
- Tenho uma pequena quitinete desocupada. De hoje em diante ela poderá ser tua casa. Sou advogado e estou precisando de um ajudante. A vaga é tua. Quando tiveres condições, passarás a me pagar aluguel. Como tens estudado muito sobre direito, eu já percebi, poderás concorrer com boas chances a uma vaga no curso para o próximo ano. Que tal?
Pedro Paulo não pode responder de imediato, a voz embargara-lhe na garganta e os olhos inundados por lágrimas incontroláveis não lhe permitiam ver com clareza.
Dr. Renato entendeu e o abraçou, também emocionado.
O sonho de Pedro Paulo estava salvo. Ele seria juiz.