lá dentro
eu nunca soube o que era liberdade. vento no rosto, fim de semana apaziguado, noite serenando em solidão confortável; nada disso foi suficiente, quando alguém chegava eu cedia meu próprio espaço. fácil tirar de mim o que não me pertence.
saí de casa aos 18, decidida pela independência como quem abre o guarda chuva diante de um dia pluvial. de maneira distinta as outras mulheres da minha família, não sai do ninho para casar. o mundo estava a minha frente e sem ninguém ao lado. fui de malas feitas, passagem comprada e meia dúzia de caixas comportando utensílios que preencheram o apartamento de dois quartos no terceiro andar. a nova cidade me jurava de pés juntos que eu teria liberdade. dois ônibus de distância da universidade que me prometeu um temporal de possibilidades. tudo era ponte e do outro lado estava uma versão de mim chamada sonho. mas não havia privacidade na comida que eu mesma cozinhava, no transporte fervilhando as sete da noite, na primeira bebedeira com novos amigos, nem na abrupta sensação de um recém conhecido estreando meu íntimo. numa lógica que parecia óbvia, privacidade e liberdade se amarravam, mas de alguma forma só o que dava nó era eu. no peito, na garganta, só me enxergava livre quando não via nada. sim, quando de olhos já fechados não restava mais nenhum minuto do dia sob a percepção de ninguém; nenhum outro para descortinar o que quer que fosse de mim. achei durante dezoito anos que se tratava de um peso parental a angústia do aprisionamento. depois, achei que dividir apartamento com uma amiga era o que me enclausurava, talvez o histórico de namoros não colaborasse. eu não queria estar só, queria estar livre. liberdade em sã consciência, me sentiria torrencialmente aliviada, sem que parecesse que estava carregando alguém dentro de mim.
hoje acho que esse alguém cá dentro continua sendo eu; uma versão pequenininha, assustada em ser parte presa de uma coisa maior que tudo vê e também é vista. a que está dentro quase não se comunica com a que está fora, com exceção das reclamações diárias por estar apertada, guardada e ninguém mais no mundo nota-la. sua única certeza de existir é incomodar. uma rotina de angústia para eu grande que carrego a eu pequena, a primeira querendo se esconder dos outros, partindo do pressuposto de que assim seria livre. enquanto isso, a pequena está empurrando as paredes do meu peito, implorando para ser vista e não somente sentida; ambas implicada em saber o que de fato é liberdade.