VOADORA

Toda vez que o sino da capela tocava repentinamente e num compasso fúnebre, a gente já dava um pinote, pois alguém havia partido dessa para melhor, e nós, as crianças da casa, tínhamos muito medo de defunto. Foi o que aconteceu com um certo sujeito que faleceu depois de um golpe que levou de um capoeirista. O sino tocava com um choro triste naquela manhã com a chegada do corpo do sujeito.

Nesse tempo, eu já estava crescido, acho que tinha uns quinze anos, mas, ainda tinha receio de pessoas mortas, principalmente, nesse caso , então, nem fui ver o defunto.

Nossa casa ficava a um passo da pequena cidade sem nome. Alguns chamavam-na de Voadora, mas acho que esse nome nem era registrado no cartório. Uma localidade qualquer, tipo aquela do Carlos Drumond de Andrade, onde as mulheres lavavam roupa no rio que tinha uma pequena queda que a gente chamava de cachoeira. Era uma coisinha de nada, tão de nada que nem dava conta de carregar a gente em época de cheia. Enquanto as adultas deixavam as roupas limpas, a molecada aproveitava para se banharem. A algazarra começava pela manhã e permanecia o dia inteiro.

Depois da aula, meus irmãos e eu, mesmo não sendo usuários daquele local, tirávamos a farda da escola e entrávamos na farra, esquecidos de que quando chegássemos em casa, não teria explicação que nos livrasse da surra.

Nesse dia, era sexta-feira. A mulherada lavava roupa, dava brilho nas vasilhas de alumínio e punham para secar ao sol. Não haviam inventado produto específico para lustrar panelas, elas usavam sabonete Lux e palha de aço fina. Outras, carregam água numa lata sobre a cabeça, para lavar o chão das suas casas, que, na sua maioria, era de madeira. Nessa limpeza elas usavam sabão daqueles escuros feitos em casa, à base de mamona e soda cáustica e palha de aço grossa, quando não partiam o coco com casca ao meio e colocavam a bola de sabão dentro dele para esfregarem as tábuas de maneira que ficassem limpinhas.

Sobre essa cidadezinha, envolta em muitas bananeiras, pés imensos de ingás e goiabeiras, à orla do rio, escondiam-se muitos segredos.

Lembro, perfeitamente, como se fosse hoje, que eu subia nos galhos mais altos, onde nenhum outro moleque tinha coragem e descia deles através dos galhos, passando para as goiabeiras e depois pulava de ponta. no lugar em que o rio fazia uma curva bem acentuada. Naquele espaço, só iam os bons nadadores, porque era bem fundo e quando dava enchente fazia até redemoinho, que os medrosos chamavam de sumidouro.

Nessa sexta-feira, meus irmãos foram para casa, enquanto eu me divertia esquecido da vida, uma vez que a rebeldia contida em mim, era muito maior que o medo da coça de bainha de facão que podia levar, caso a sorte não estivesse do meu lado, porque na maioria das vezes, contava uma história tão mirabolante e dava um jeito de fazer minhas obrigações mais depressa que meus irmãos que já tinham começado as deles, bem antes de mim.

Nesse dia, descobri que algumas mocinhas namoravam escondidas em meio as bananeiras. Achei um barato os amassos que presenciei, inclusive, o pai que vigiava a filha também estava de esfregação com uma moça mais velha, recém chegada ao vilarejo e bem por isso, passou batido o papo da filha com o rapaz que namorava às escondidas, há bastante tempo e que lhe trazia muitos dissabores, por causa da proibição do pai.

Em meio a disso, acabei assobiando lá de cima do pé de ingá fazendo com que o homem me visse e ficasse esperto com a minha descoberta e com o que eu pudesse fazer com ela.

Notei que ele ficou apavorado e tratou de ir embora.

Assim que ele se foi, fui falar com a moça e lhe deixei ciente acerca do que podia acontecer, caso a mulher dele descobrisse, ou, o pai dela ficasse sabendo que ela estava de chamego com um homem casado. Ameacei-a também, de ir dizer ao pai dela sobre o que vi. Claro que isso a deixou apavorada. Pediu-me pelo amor de Deus, que guardasse o segredo, pois, ela não sabia que ele era casado. Sujeito safado, ia vigiar a filha e aproveitava para amassar a filha alheia! Ainda bem que descobri e “joguei farofa no ventilador”.

O bem que eu fiz nesse dia, foi compensado, não apanhei. Fui correndo, como se corre um cervo com medo da onça. Trouxe as vacas ao curral, montado na égua mais mansa que papai tinha, guiando-a somente com um cipó macio que tirei do mato cortando com os dentes.

Hoje, depois de muito mais que meio século, estou a narrar o que acho interessante deixar para as novas gerações conhecerem sobre a infância nos tempos em que a tecnologia era tão somente meros estudos que os cientistas ensaiavam esperançosos para o que temos, então.

De segredo em segredo, havia esse pai que vigiava atrás das sombras das bananeiras. a filha moça em seus afazeres, entre outros muito piores aos olhos de gente fofoqueira, como as que residiam na comunidade.

Nesse tempo, os tabus mais tolos como os de agora, eram vistos como pecados cabeludos, quando não, dramas e, ou, tragédias consumadas que resultavam em casamentos feitos às pressas para que a barriga da moça não ficasse evidente e o povo, cuidador da vida alheia, contava os dias para dizer que a criança nasceu antes de nove meses.

Tantas coisas naturais eram colocadas rua abaixo, ou, rua acima pela língua do povo, como se o mundo fosse diferente do que sempre foi. Quero dizer, como se a culpa do pecado não tivesse começado por Adão ter degustado a maçã que Eva lhe dera de muito bom grado.

Dizem que todo homem ciumento da mulher e das filhas não é flor que se cheire e pude constatar essa verdade, a partir da minha descoberta.

Nesse dia, depois de cuidar de todas tarefas da casa, já era noitinha, quando a filha se desculpou dizendo que tinha esquecido no lajedo do rio, o balde com os panos de prato de molho, contudo, essa desmemória era proposital, para ir se encontrar com o namorado que o pai odiava. E lá ela se foi em busca do balde.

Durante o dia, enquanto o pai estava em meio às bananeiras com a outra moça, descuidou-se dela, que pôde marcar o encontro com o amor da sua vida.

Entre beijos e abraços o ato da paixão dos dois foi consumado, ali mesmo na laje de pedras e ela não voltou para casa.

Eu que conhecia muito sobre o segredo deles, sabia que, dia menos dia, isso ia acontecer. Era uma paixão avassaladora, que quanto mais o pai proibia, brigava e espancava a filha, mais, ela se dispunha a estar com o rapaz.

Constatando sua ausência, o pai foi atrás, mas, retornou apenas com o balde, a filha havia evaporado.

A criatura, em sua valentia desmedida, fora de si, pegou o revólver, esbravejando rua à fora, e foi ao encalço dos dois, na casa onde o rapaz morava com a mãe e as irmãs, todavia não os encontrou.

Seu escândalo exagerado, típico de pessoa falsa moralista, fez com que a cidade inteira ficasse sabendo.

A senhora, mãe do moço, que de nada sabia, tomou o maior susto com a chagada do pai da sua futura nora, mas, nem pôde lhe dizer nada, porque os dois já estavam longe, na próxima cidade, que de tão grande tinha somente uma pensão, na qual, ambos passaram a noite de amor mais desejada de suas vidas.

No outro dia, foram ao cartório para providenciarem o casamento. Talvez, o pai violento ficasse mais calmo, sabendo que os eles haviam providenciado os papeis e que ele deveria ser chamado para dar seu aval, pois a filha só tinha dezesseis anos.

Sobre o segredo e os indecoros no meio das bananeiras, que eu achava que estava no papo, entretanto,o dono da máquina de pelar arroz, também presenciou o corrido, Lembrou do escatembado que pulou a janela do quarto da amante do Tião? Esse sim, além de safado, era o mais fuxiqueiro da cidade, não contou ao pai da moça, mas, contou ao irmão que era professor de capoeira, e o mesmo tratou de ir tomar satisfação com o sujeito.

Na discussão, deu-lhe uma voadora que ele precisou ser levado ao hospital de uma cidade que tinha mais de cem quilômetros de distância, ficando internado por vários dias e mesmo assim, veio à óbito, uma vez que o golpe certeiro e eficaz, estourou-lhe o baço.

Tive muito medo de sobrar para mim, quando ele voltasse para casa, mas, tive sorte de novo, virou defunto.

Depois dessa tragédia, Voadora de fato, foi registrada com esse nome.

O capoeirista fugiu, tão logo chegou a noticia da morte do meliante, e sua família, um mês depois, foi-se também.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 03/06/2023
Reeditado em 11/11/2023
Código do texto: T7804681
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