penitência
eu não queria ser mãe. sabia que eventualmente isso um dia iria acontecer, nenhuma das mulheres da minha família saiu de casa senão casada. minha tia mesmo mora com vovó até hoje, pois nenhum homem colocou uma aliança em seu dedo, e qualquer outra filha que casasse para depois descasar automaticamente voltaria pro lugar de onde veio, pois nossa matriarca estava de braços abertos no território de origem.
eu não queria ser mãe, principalmente tão nova. coloquei katarina no mundo quando eu tinha dezesseis anos, meu casamento não teve um longo vestido branco, aconteceu no civil e minha roupa estava marcada pela barriga denunciando meu pecado; este que fugia minhas intenções, como eu deveria ter fugido quando conheci meu ex marido.
meus três filhos iluminam minha vida, um homem e duas mulheres trabalhadores, inteligentes, me deram apoio para voltar a estudar, ajudam em casa, possuem a beleza da inocência, ainda que eu saiba que a vida já desgastou isso um pouquinho, pois é o que ela faz.
eles não são mais crianças, eu não me arrependi de ser mãe. o arrependimento mesmo foi do marido que levei vinte anos para conseguir separar, abstraindo todas as vezes que ele chegava em casa tão alcoolizado que dormia na calçada, ou no chão, ou então nem voltava para casa. "pelo menos ele não é violento" eu pensava, e me encorajava a não saber o meu querer. a maternidade ocupou todos os espaços que ousaria utilizar para conhecer algo além da rotina, o automático era confortável, assistir criança após criança chegando na família era sinônimo de felicidade, ou pelo menos assim diziam meus parentes.
ainda que fossem mais crianças do que planejei parir, ou que já nos primeiros cinco anos de casamento eu já não conseguisse dizer a meu marido que o amava, estava fora do território de origem, sem as rédeas parentais, e isso parecia liberdade. eu não sabia que a ausência de adolescência seria sentida, mas não era uma consequência tão violenta assim para o meu pecado.
não me planejei direito, eu não semeei com a consciência de quais sementes eram aquelas.
foram vinte anos para entender que toda angústia era desejo. mesmo depois de descobrir que deixar o pai dos meus filhos sozinho com sua aguardente era o que eu queria, haviam outros desgastes, outras consequências pro meus pecados. quando finalmente fui embora, minha família insistia que eu olhasse pra trás. ele não é violento, repetiam.
e não era mesmo não, mas pedia para fazer sexo quando eu não estava disposta, conversava tanta besteira bêbado que ficava difícil dar atenção, não me ajudou com nenhuma das três crianças que colocamos no mundo juntos, e eu não o admirava. será que isso não é suficiente para querer outra coisa?
meus filhos, meus tesouros, que viveram debaixo do mesmo teto, enxergando o mesmo homem que eu, aquele que até hoje não chamam de pai, foram os alicerces para que eu me mantivesse fora daquele casamento. mas como disse,haviam pecados a pagar, e dessa vez a penitência era começar a trabalhar depois de todo aquele tempo, tendo como experiência somente o cuidado domiciliar. não era para casa de minha mãe que eu iria voltar, nós iríamos erguer nosso próprio território.
assim fizemos, sob muito suor e lágrimas, sobretudo em um período que me empurraram um diagnóstico de depressão. acreditei que era só uma fase mais difícil que as outras, viver pesava toneladas. foram anos violentos até se tornar possível identificar o que eu queria, e querer tornaria as coisas mais leves.
essa minha existência toda está por trás das palavras enquanto converso com minha nora no quintal da casa onde moram eu, meu filho caçula e nossa liberdade. com apenas vinte e quatro anos ela diz que está aprendendo a viver somente agora, como se estivesse atrasada.
dou risada, digo que até está adiantada no processo. sem me prolongar na história, porém ciente dela, lhe digo que comecei a aprender aos 54, e foi somente quando entendi que viver não era apenas pagar pelos pecados.