NADA COMO UM SUSSURRO NO OUVIDO CERTO
Londres, século XIX, onde tornozelos não podiam aparecer e em surdina peles nuas criavam alianças poderosas, o poder pelo prazer, vilanias ganhando anonimato, segredos velados empoderados contra o recato decadente e silente, hipocrisias vencendo com liberalidades.
Rose Blue Thompson, não poderia imaginar o quão longe chegaria, depois de amargar doze anos mendigando pelas vielas sombrias de Londres, o fog era seu aliado mais frequente. Certas ações necessitavam se manter veladas, alguém poderia imaginar que uma Mildred imunda pudesse comer uma fatia de shepherd’s pie ou um pequeno muffin? Havia que se empreender alguns ardis.
Mildred morreu sufocada, logo que o sussurro oportuno alcançou os ouvidos certos e logrou sucesso. Naquele instante surgiu a impávida Rose Blue Thompson, A Cortesã. Os primeiros ouvidos eram de um juiz, com um fetiche inusitado e cansado do casamento arranjado. Apreciava meninas sujas de lábios rosados, não para conjunções carnais, apenas para acariciar com os dedos gulosos, se deleitando com o medo ou curiosidade estampados nos olhos inocentes. Costumava pagar regiamente por estes favores, que normalmente aconteciam nas vielas escuras da cidade adormecida. Ele era bonzinho, a torta de carne que Mildred pode comprar, acariciou seu estômago ruidoso e seu sono foi mais silente, ela não se incomodaria de realizar de novo os desejos dele. Passou a seguir os passos dele de forma discreta, mas, presente. Sempre que os seus olhos se cruzavam ela passava a língua sobre os lábios rosados, ele ao invés de se sentir incomodado, deixava a imaginação voar e seu dia de trabalho fluía com mais leveza, precisava encontrar a menina de novo.
O juiz, contratou um estafeta por algumas moedas de ouro e pediu sigilo absoluto sobre o que pediu a ele, o aluguel por um mês de um quartinho com banheiro, num cortiço bem afastado, então, foi procurar a menina, perguntou se sabia ler o que ela confirmou e lhe entregou um bilhete com o endereço, chave do quartinho e umas moedas para que ela comprasse comida, sabão e toalhas. Informou que encontraria com ela mais tarde, mas, pediu que ela não se limpasse. Mildred nem podia acreditar, gastou o mínimo em comida de sal, algumas frutas, sabão e toalha, só de se imaginar dormindo numa cama ela já estava feliz, tudo por umas alisadinhas e um sorriso tolo. O estafeta havia providenciado, lençóis, fronhas e cobertores bem como um tonel com água para banho. A dona do cortiço recebeu um envelope com dinheiro suficiente para que nada visse ou ouvisse, além de manter o tonel abastecido todos os dias. O que não teve nenhuma dificuldade, dinheiro entrando era o mais importante, desde que não ocorressem mortes em seu estabelecimento, estava tudo certo.
Depois de duas semanas, o juiz achou que Mildred estava emagrecendo, perguntou se ela estava se alimentando, ela confirmou, mas, ele duvidou da qualidade, logo no dia seguinte, pagou ao estafeta para que levasse queijos, leite, frutas, carne e feijões conservados em banha para a menina. Pediu também que pagasse a moradia por mais um mês, se sentia muito bem com a companhia de Mildred, ela fazia as suas vontades calada, emprestava os seus ouvidos com parcimônia e nada lhe pedia, ao contrário era sempre muito grata por sua mudança de vida. Sujar-se apenas para ele, não era um problema. Logo que ele saia, ela tomava um longo banho. O seu colchão estava mais recheado a cada dia. Fez amizade com a dona do cortiço, mas, não lhe contava nada sobre o seu patrocinador, mas, sentiu que poderia ter nela uma aliada, afinal poderiam se ajudar de alguma forma. A oportunidade apareceu mais ou menos uns quatro meses depois dos primeiros encontros com o juiz.
A dona do cortiço estava com um problema com um morador, que volta e meia entrava e saia de prisões por pequenos furtos e não estava pagando o aluguel, Mildred resolveu ajudar, com um sussurro bem colocado justo na hora que o juiz arfante salivava, ela explicou o fato e deixou no ar o desejo de ajudar a dona do lugar, quem sabe se ao camarada fosse imputado um crime mais sério, aí ele ficaria preso por muito mais tempo. O juiz estava de quatro pela pequena e o que ela pediu era tão fácil de se realizar, mexeu uns pauzinhos e o camarada sumiu. A menina o agradeceu fazendo um pedido inusitado, que ele lhe banhasse com delicadeza. O fetiche dele tinha que ser mudado afinal, ficar mal cheirosa, não era mais comum para ela. Ele pensou um pouco, mas, atendeu e gostou de ensaboar a pele da moça que estava ganhando corpo visivelmente, uma bonita moça estava nascendo ali e era toda dele. Naquela noite, deixou uma moeda de ouro para que ela comprasse uma camisola bonita e um sabonete mais perfumado, mas, a sua aparência maltrapilha, não foi permitida pela lojista. O estafeta que estava ficando com os bolsos bem recheados resolveu a questão, comprando o necessário e mandando um meliante quebrar as vitrines da loja no dia seguinte, o que causou à dona um grande prejuízo. O poder da menina ainda invisível, começava a dar o ar da graça..
Sequenciaram-se várias ocasiões onde o sussurro de Mildred ganhou força e beneficiou não só a ela, mas, também Belle, a dona do cortiço. O juiz queria que a menina florescesse num lugar maior e melhor, mas, ela segredou que gostava dali, só preferiria que os outros moradores do lugar fossem outras mocinhas e não tantos homens, o juiz avaliou esta informação e através de contatos com amigos importantes, que comungavam vários fetiches, resolveram, então, reformar o pequeno cortiço por inteiro, acordando com uma Belle muito bem remunerada, a troca dos moradores por mocinhas que ele e alguns parceiros, selecionaram pessoalmente. Não ficou um ambiente luxuoso, mas, bem mais agradável, sempre mantendo a discrição. Foi na primeira lotação máxima do lugar, que Mildred virou definitivamente Rose Blue Thompson, com documentação arranjada pelo próprio patrocinador, encantado pela moça que desabrochava voluptuosamente. Era cada vez melhor acariciar os seus contornos, até o seu casamento parecia mais feliz, cobria a pobre esposa enganada de joias, peles, viagens e ela engolia tudo silente e sem alardes. Afinal, para a sociedade ele era um marido dedicado e generoso.
Numa tarde de seu aniversário, ele presenteou a esposa com um perfume que na verdade não lhe agradou muito, mas, o marido parecia adorar aquele aroma, então, ela o usava constantemente, era um cheiro muito marcante e ela preferia águas de colônia mais suaves e delicadas, mas, como recusar este favor a um marido tão presente e dedicado. Mal sabia ela que o perfume era o mesmo de Rose Blue Thompson. Sua vida sexual com ele sempre foi afetiva e conjunção carnal, apenas para gerar filhos, nos outros dias ela era só uma dama, rainha do seu lar e companhia afável e elegante nos eventos que favoreciam a posição do marido. Tinha uma vida extremamente confortável e segura, nada lhe faltava, pelo menos era assim que se punha fielmente a acreditar.
O cortiço de Belle, ganhou até nome, Solar Blue, tendo se passado três anos a aliança de Belle e Rose logo as fizeram sócias e a vida delas prosperava, o juiz e os seus amigos estavam satisfeitos com os acordos, nunca foram tão felizes em seus casamentos, seus segredos estavam muito bem guardados e muitos lojistas e comerciantes estavam enriquecendo, sem mesmo entender o porquê. Através do juiz, ela exercia um enorme poder por toda a cidade, policiais, doutores, políticos e abastados comerciantes. Desenrolava facilmente alguns impedimentos que pudessem acontecer, pois os amigos do juiz davam um jeito de resolver todos os problemas que demonstrassem ser algum impedimento, dos suaves aos sórdidos, ilícitos ou ilegais. O Solar Blue estava bem conhecido pela cidade, mas, era assunto proibido às mulheres nas altas rodas da sociedade, chás ingleses regados a hipocrisia, olhos sombreados por chapeuzinhos abobadados e sorrisos solidários.
O tempo passa inexoravelmente, quando Belle fez a sua passagem para o infinito, foi velada sob caro champanhe e petiscos finos, não houve tristeza nos participantes pomposos, somente reverências a sua administração excelente. O Solar Blue se tornou um local para treinamento de cortesãs, que se espalharam incondicionalmente por toda Londres, não havia um órgão público que não tivesse em seu livros contábeis, saídas de valores não identificados para sustentá-las. O tempo do juiz também passou rápido e não foi mais possível visitar a sua eterna protegida, mas, as alianças formadas através dos tempos, lhe deram a garantia de que ela seguiria plena a sua jornada. Mesmo assim, Rose deu um jeito de plantar uma das suas meninas, dentro da casa dele para assisti-lo até o fim de sua vida, curiosamente a moça foi aceita na casa por uma carta de referência assinada por uma dama da sociedade, que ciente dos deslizes do marido lhe fez o favor recebendo em troca, uma propriedade suntuosa. O Solar Blue, se tornou um grande hotel com serviços apenas para homens de negócios, tendo no ‘cardápio’ o ‘menu’ dos ‘serviços adicionais’, que foi o nome escolhido por Rose Blue Thompson para os mimos oferecidos por suas ‘meninas’.
Os quinze anos que se passaram, transformaram Rose Blue numa mulher de beleza incrível e que angariava cada vez mais admiradores, mas, não misturava negócios com prazer. Às vezes ela pensava se algum dia se apaixonara por algum homem, mas, não se lembrou de ninguém. As poucas ocasiões que escolheu alguém para aliviar a tensão, foi com um militar de passagem pela cidade, se deliciou e ponto final, gostava mesmo era de poder e dinheiro, é claro. Mas, também para ela o tempo escorreria pela ampulheta, então, começou a treinar uma substituta, já até sabia quem seria pois a moça em questão, era muito inteligente, diligente e tinha muito do seu jeito de encarar a vida, Loretta. Passou dois anos se empenhando nisso e logrou sucesso, Loretta era muito hábil e se expressava muito bem, Rose Blue poderia se aposentar quando chegasse a hora.
O século virou e Rose estava se sentindo cansada, era hora de passar o bastão da realeza para Loretta. Vendeu as suas propriedades pessoais, fez volumosas malas, se despediu com festa dos amigos, parceiros e das suas meninas, pediu que todo o seu dinheiro pessoal fosse transferido para um banco na América do Sul, precisamente no Brasil e levou consigo apenas o que acreditava ser necessário, para a longa viagem. Viveu em paz numa cidadezinha pacata no interior das Minas Gerais, com apenas duas criadas e um cavalariço. Pelo menos uma vez por mês escrevia para Loretta, apenas para conversar sobre coisas triviais. Quando seus olhos fecharam, os criados descobriram que ela havia deixado tudo o que tinha, em testamento para os três. Rose Blue Thompson deixara a sua lápide escolhida – Jaz aqui sem saudades, uma mulher à frente do seu tempo. Sob o seu jazigo foram colocados lindos vasos de rosas vermelhas, que eram as suas flores preferidas.
* Imagem de tudorbrasil.com