Sonho de formatura
Noite de formatura.
O registro definitivo, após tantos anos de trabalho, noites em claro debruçada sobre os livros.
... As famílias estavam felizes, empolgadas, com aquele brilho nos olhos, que revelam o orgulho que se têm. Mais um diploma para ser pendurado com orgulho, na parede da biblioteca da família.
Ela permanece ali... aflita. Coração aos pulos. Sua mente não pára, pensamentos passam por ela velozes. As mãos frias apertam-se uma contra a outra. O corpo afundado na poltrona confortavelmente macia do auditório da Faculdade.
Alguns amigos e seus respectivos parentes passam por ela e a cumprimentam. Ela agradece e retribui o sorriso – quase que automaticamente – Um pensamento não lhe sai da cabeça: porque isso não acaba logo?
Ela não foi uma aluna brilhante. Mas era reconhecida, pelos mestres e colegas de classe por sua dedicação e esforço. Quase nunca saia com os amigos de República, suas noitadas eram quase sempre, debruçadas sobre a confidente escrivaninha. Muitas vezes a turma a convidava para os acompanhar nas baladas. Mas ela sempre sorria e se desvencilhava dessa situação, embaraçosa para ela. Eles insistiam e ela, não voltava atrás: - Não posso, preciso estudar! Farmaco me deixa um tanto confusa. – era a resposta de quase sempre. Após eles se retirarem... Ela permanecia ali, sentada por mais alguns minutos. Pegava seu diário e divagava, por horas a caneta não parava. Até que ela terminasse de anotar seus desabafos, suas impressões estariam para sempre impressas ali. Páginas e mais páginas eram consumidas numa só noite. Depois debruçava no travesseiro e chorava... muito. O sono a tomava sem que ela percebesse, tamanho o desgaste emocional em que se encontrava.
Ninguém conhecia sua família, nenhum parente a procurara. Quando questionada, ela saia pela tangente: - Eles passaram a vida viajando. Gostavam mesmo era de passear no Sirilanka ou esquiar no Nepal. Mas haviam morrido num acidente de carro numa curva perigosa de Moscou. – Contava ela sem pestanejar, demonstrando saudades e boas lembranças.
Todos ansiavam pelo período de férias. Ela, não!
Saia no máximo por uma semana, quase que por obrigação. Nunca contava a ninguém onde ia ou quando voltava. Nenhuma foto tinha sua também nos murais, normais entre os jovens, em seus quartos.
Era enigmática, porém querida por quase todos daquela República. Ela na verdade, se sentia um peixe de água doce em meio a tantos peixes de água salgada. Mas queria o diploma! Ter o título de doutora era para ela, mais importante que tudo. Mais que os sentimentos de família, amizade ou algo mais. Nada, nem ninguém realmente importavam – diante de seu tão sonhado canudo.
... Um por um os nomes foram sendo chamados, os formandos de sua turma. Ela aplaudia, num gesto mecânico e pensava: está acabando... está acabando... falta pouco agora. E repassava mentalmente o texto por anos decorado – não vai me falhar agora – ameaçava ela à sua memória.
O Paraninfo simpático fez um entusiasta porém suscinto discurso. Aplaudido por todos os formandos, que não se continham em si, tamanha a euforia do dia sonhado.
... O reitor ia chamando um a um os alunos por seus respectivos nomes e sobrenomes.
Uma profusão de lembranças passavam como um filme em sua mente agora, deixando-a embaraçada e confusa. Via seus pais, tão desleixados e pobres – seu pai acidentou-se por estar embriagado, perdeu a mão na máquina de fazer salsichas, na pequena fábrica de laticínios clandestina que mantinha no quintal de casa; sua mãe costureira, trabalhava também, vendendo as salsichas caseiras e alguns pobres salgadinhos, de porta-em-porta, pelas ruas poeirentas da vizinhança ou em alguns comércios dos bairros mais distantes, onde alguns comerciantes a recebiam por mercadoria.
Sua tia é quem custeava sua faculdade, seus livros na maioria, eram comprados em sebos ou emprestados.
Tia Rita – senhora gorda, negra, lábios grossos, narinas fartas, bondosa esforçada – Sempre com seu lenço amarrado na cabeça, a guardar os cabelos que já lhes faltavam.
Não media esforços nas lavagens de roupas para as Senhorinhas. E com as faxinas dos fins de semana, complementava a verba, para satisfazer o sonho da única e amada sobrinha em se formar doutora. O prazer era tanto que, nem sentia as dores em seus joelhos, nem nos dedos com artrite, depois de horas a fio de barriga colada ao tanque, em contato com a água fria.
-Minha sobrinha vai ser doutora! – ela dizia sempre, com o tom de orgulho a lhe modular a voz, para as patroas – É tão esforçada essa minha menina, nem tem tempo para nos visitar, só tem uma semana de férias por ano a coitadinha.
Mas as patroas são tão “ocupadas” que nem mesmo ouviam o que D. Rita dizia. Quando muito, limitavam-se a responder com muxoxo: - Uhum... Sei!
... Juliana Pereira Euzébio -anuncia o reitor-.
É agora, sou eu. Disse Juliana num sussurro. Ainda estava aflita, com medo de engasgar, gaguejar em seu breve e tão decorado discurso. Levanta-se da poltrona e segue rapidamente pelo corredor central do auditório. Os amigos a olham parabenizando-a, alguns sentados a beira do corredor, ainda conseguem apertar sua mão, que agora não está fria como antes. O nervosismo inicial tinha sido substituído pela certeza do saber o que quer. E isso ela deixa claro, em sua postura ereta, nos passos firmes. Sobe rapidamente a escada lateral, ganha o palco. Recebe o diploma das mãos do reitor, cumprimenta-o primeiramente, passa pela mesa e cumprimenta os professores com um seco olhar, vai em direção ao microfone. Todos aguardam, em burburinho, que ela faça seu discurso de formatura. Aos poucos passos que a separavam do pedestal do microfone, uma ponta de remorso, por pouco não esmoreceu seus planos. Lembra-se, mesmo que só por alguns instantes, dos pais pobres e de Tia Rita. Respira fundo, põe mais força no pisar, respira fundo e fala:
-Agradeço a mim, por todos os meus esforços e dedicação nesses anos de estudo. É isso!
Ao que os amigos aplaudiram meios que sem entender; os professores se entreolharam surpresos. Ela deu as costas... não olhou mais para trás; passos firmes, cabeça erguida, saiu pelo corredor lateral rumo à rua. Não ia participar do baile...
-Agora sou doutora, irão me respeitar pelo diploma, consegui!
Drª. Juliana Euzébio é assim que quero ser tratada por todos a partir de hoje. – Falava ela em tom baixo enquanto ganhava a rua. Retirou da bolsa um papel amarelado pelo tempo, que guardara todos esses anos dentro de seu diário. Sorriu. Seguiu em direção a uma agência dos Correios, entrou.
... D. Rita sai do estado de coma, cinco meses depois de ter sido internada as pressas, na Emergência do Hospital Pedro II, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Os vizinhos que a socorreram, não souberam informar o que houve. Só que encontraram D.Rita caída na sala de sua casa, com um telegrama apertado com muita força contra o peito.
D. Genoveva e Seu Agenor nunca mais saíram de casa, acometidos pela depressão devido a tristeza de perder a filha, precocemente num acidente de carro, uma semana antes da formatura, que a desfigurou ao ponto de ter sido enterrada as pressas, num cemitério de Campinas, sem a presença da família.
Juliana parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.
(Inspirado na frase de Machado de Assis, "parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir" do conto: Noite de Almirante)
Noite de formatura.
O registro definitivo, após tantos anos de trabalho, noites em claro debruçada sobre os livros.
... As famílias estavam felizes, empolgadas, com aquele brilho nos olhos, que revelam o orgulho que se têm. Mais um diploma para ser pendurado com orgulho, na parede da biblioteca da família.
Ela permanece ali... aflita. Coração aos pulos. Sua mente não pára, pensamentos passam por ela velozes. As mãos frias apertam-se uma contra a outra. O corpo afundado na poltrona confortavelmente macia do auditório da Faculdade.
Alguns amigos e seus respectivos parentes passam por ela e a cumprimentam. Ela agradece e retribui o sorriso – quase que automaticamente – Um pensamento não lhe sai da cabeça: porque isso não acaba logo?
Ela não foi uma aluna brilhante. Mas era reconhecida, pelos mestres e colegas de classe por sua dedicação e esforço. Quase nunca saia com os amigos de República, suas noitadas eram quase sempre, debruçadas sobre a confidente escrivaninha. Muitas vezes a turma a convidava para os acompanhar nas baladas. Mas ela sempre sorria e se desvencilhava dessa situação, embaraçosa para ela. Eles insistiam e ela, não voltava atrás: - Não posso, preciso estudar! Farmaco me deixa um tanto confusa. – era a resposta de quase sempre. Após eles se retirarem... Ela permanecia ali, sentada por mais alguns minutos. Pegava seu diário e divagava, por horas a caneta não parava. Até que ela terminasse de anotar seus desabafos, suas impressões estariam para sempre impressas ali. Páginas e mais páginas eram consumidas numa só noite. Depois debruçava no travesseiro e chorava... muito. O sono a tomava sem que ela percebesse, tamanho o desgaste emocional em que se encontrava.
Ninguém conhecia sua família, nenhum parente a procurara. Quando questionada, ela saia pela tangente: - Eles passaram a vida viajando. Gostavam mesmo era de passear no Sirilanka ou esquiar no Nepal. Mas haviam morrido num acidente de carro numa curva perigosa de Moscou. – Contava ela sem pestanejar, demonstrando saudades e boas lembranças.
Todos ansiavam pelo período de férias. Ela, não!
Saia no máximo por uma semana, quase que por obrigação. Nunca contava a ninguém onde ia ou quando voltava. Nenhuma foto tinha sua também nos murais, normais entre os jovens, em seus quartos.
Era enigmática, porém querida por quase todos daquela República. Ela na verdade, se sentia um peixe de água doce em meio a tantos peixes de água salgada. Mas queria o diploma! Ter o título de doutora era para ela, mais importante que tudo. Mais que os sentimentos de família, amizade ou algo mais. Nada, nem ninguém realmente importavam – diante de seu tão sonhado canudo.
... Um por um os nomes foram sendo chamados, os formandos de sua turma. Ela aplaudia, num gesto mecânico e pensava: está acabando... está acabando... falta pouco agora. E repassava mentalmente o texto por anos decorado – não vai me falhar agora – ameaçava ela à sua memória.
O Paraninfo simpático fez um entusiasta porém suscinto discurso. Aplaudido por todos os formandos, que não se continham em si, tamanha a euforia do dia sonhado.
... O reitor ia chamando um a um os alunos por seus respectivos nomes e sobrenomes.
Uma profusão de lembranças passavam como um filme em sua mente agora, deixando-a embaraçada e confusa. Via seus pais, tão desleixados e pobres – seu pai acidentou-se por estar embriagado, perdeu a mão na máquina de fazer salsichas, na pequena fábrica de laticínios clandestina que mantinha no quintal de casa; sua mãe costureira, trabalhava também, vendendo as salsichas caseiras e alguns pobres salgadinhos, de porta-em-porta, pelas ruas poeirentas da vizinhança ou em alguns comércios dos bairros mais distantes, onde alguns comerciantes a recebiam por mercadoria.
Sua tia é quem custeava sua faculdade, seus livros na maioria, eram comprados em sebos ou emprestados.
Tia Rita – senhora gorda, negra, lábios grossos, narinas fartas, bondosa esforçada – Sempre com seu lenço amarrado na cabeça, a guardar os cabelos que já lhes faltavam.
Não media esforços nas lavagens de roupas para as Senhorinhas. E com as faxinas dos fins de semana, complementava a verba, para satisfazer o sonho da única e amada sobrinha em se formar doutora. O prazer era tanto que, nem sentia as dores em seus joelhos, nem nos dedos com artrite, depois de horas a fio de barriga colada ao tanque, em contato com a água fria.
-Minha sobrinha vai ser doutora! – ela dizia sempre, com o tom de orgulho a lhe modular a voz, para as patroas – É tão esforçada essa minha menina, nem tem tempo para nos visitar, só tem uma semana de férias por ano a coitadinha.
Mas as patroas são tão “ocupadas” que nem mesmo ouviam o que D. Rita dizia. Quando muito, limitavam-se a responder com muxoxo: - Uhum... Sei!
... Juliana Pereira Euzébio -anuncia o reitor-.
É agora, sou eu. Disse Juliana num sussurro. Ainda estava aflita, com medo de engasgar, gaguejar em seu breve e tão decorado discurso. Levanta-se da poltrona e segue rapidamente pelo corredor central do auditório. Os amigos a olham parabenizando-a, alguns sentados a beira do corredor, ainda conseguem apertar sua mão, que agora não está fria como antes. O nervosismo inicial tinha sido substituído pela certeza do saber o que quer. E isso ela deixa claro, em sua postura ereta, nos passos firmes. Sobe rapidamente a escada lateral, ganha o palco. Recebe o diploma das mãos do reitor, cumprimenta-o primeiramente, passa pela mesa e cumprimenta os professores com um seco olhar, vai em direção ao microfone. Todos aguardam, em burburinho, que ela faça seu discurso de formatura. Aos poucos passos que a separavam do pedestal do microfone, uma ponta de remorso, por pouco não esmoreceu seus planos. Lembra-se, mesmo que só por alguns instantes, dos pais pobres e de Tia Rita. Respira fundo, põe mais força no pisar, respira fundo e fala:
-Agradeço a mim, por todos os meus esforços e dedicação nesses anos de estudo. É isso!
Ao que os amigos aplaudiram meios que sem entender; os professores se entreolharam surpresos. Ela deu as costas... não olhou mais para trás; passos firmes, cabeça erguida, saiu pelo corredor lateral rumo à rua. Não ia participar do baile...
-Agora sou doutora, irão me respeitar pelo diploma, consegui!
Drª. Juliana Euzébio é assim que quero ser tratada por todos a partir de hoje. – Falava ela em tom baixo enquanto ganhava a rua. Retirou da bolsa um papel amarelado pelo tempo, que guardara todos esses anos dentro de seu diário. Sorriu. Seguiu em direção a uma agência dos Correios, entrou.
... D. Rita sai do estado de coma, cinco meses depois de ter sido internada as pressas, na Emergência do Hospital Pedro II, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Os vizinhos que a socorreram, não souberam informar o que houve. Só que encontraram D.Rita caída na sala de sua casa, com um telegrama apertado com muita força contra o peito.
D. Genoveva e Seu Agenor nunca mais saíram de casa, acometidos pela depressão devido a tristeza de perder a filha, precocemente num acidente de carro, uma semana antes da formatura, que a desfigurou ao ponto de ter sido enterrada as pressas, num cemitério de Campinas, sem a presença da família.
Juliana parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.
(Inspirado na frase de Machado de Assis, "parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir" do conto: Noite de Almirante)