O Abraço

Noite como qualquer outra,
Dessas normais, de agosto
Quente,
Lua a pino;
Eu e minha esposa voltávamos
De uma noite de autógrafos
De um autor que gostamos;
Comêramos na Lanchonete da Cidade
Cento e trinta paus a conta
Comida boa, com uma cerveja
Gelada!
Retornávamos para nossa casa,
Passava das onze;
Numa das ruas vazias de Higienópolis
Todos já guardados
No calor dos seus apartamentos
Passamos por um catador de sucatas
Que se debruçava dentro de uma caçamba
Cheia de lixo!
Nos lembramos de umas blusas no carro, de frio
Que separáramos para doar;
Paramos o carro para entregar as blusas
Ao pobre catador de sucatas
Fizera uma semana de frio ártico
Eram dias de inverno
Embora a noite parecesse de verão;
Desci do carro e me dirigi até o catador
Que me avistou e logo me cumprimentou
Numa atitude bastante tímida até
Mas simpático, sofrido
Encarcerado pela pobreza
Castigado na aparência
Era um rapaz muito jovem, negro
Na faixa dos vinte e cinco
Usava roupas muito sujas
E rasgadas
Seu rosto estava coberto de pó branco
Deduzi que na caçamba poderiam haver
Restos de alguma obra, o que o deixara
Com uma aparência mais suja, rude
Mas seus olhos eram apenas de um jovem
Que por circunstancias diversas
Fora tragado pela miséria
Salvando sua vil sobrevivência
Com alguns restos de entulhos levados à venda;
Num gesto cortês aceitou a oferta sem hesitar
Disse a ele que era da minha esposa
Mas que no frio uma boa blusa sempre ajuda;
Com um ar de agudo agradecimento
Pegou a sacola e sequer viu o que ali dentro continha
Apenas agradeceu com um sorriso acanhado
Mas olhos vivos, sedentos por vida!
Quando quase me virava para ir embora
Ele arriscou...
“Estou sem comer, pode me dar dinheiro para comer?”
Sua voz pálida não mentia
A fome é uma maldita que perturba
Como um zunido de mosquito
Como uma mão que agarra o estômago
E aperta, até rasgar!
“Estou sem nada aqui amigo, esqueci de sacar dinheiro
Até furei o pedágio!”
Mas numa vírgula de segundo e flagrado pela lembrança
De noites solitárias
Não tão miseráveis
Em pensões sujas e massacrado pela fome
Em busca de qualquer pão duro e gelado
Para aliviar um pouco a feroz que nunca sacia;
Pensei um pouco e lhe perguntei se haveria algum lugar
Que ainda servia um lanche naquela hora precipitada
Onde poderia servir-lhe algo com pagamento em cartão;
Num aceno desesperado apontou uma tenda de lanches
Toldo verde, meio de esquina, com umas mesas na calçada
Com meia dúzia de pinguços de olhares perdidos
Tropeçando em pontos e vírgulas
Com risos de pássaros engaiolados e seus sonhos de liberdade
Como cães domesticados numa saidinha
Sem coleiras, correndo para uma mijadinha
Fomos então até a tenda, eu e o catador
Tenda da salvação!
Ele andando, eu de carro
Ele chegou primeiro, apressado
Parecia aliviado,
Enfim algo para preencher lhe o estômago
Perguntei ao homem da barraca:
“O que tem de lanche aí?”
Sentia que os bêbados nos fitavam, curiosos
O jovem catador me corta,
“Pode ser um saquinho de rufles e um guaraná”
Insisti:
“Não quer um lanche?”
Ele sem graça me responde
“Não, pode ser só isso mesmo”
“Um pacote de rufles e um guaraná”
Parecia envergonhado, resignado
Querente e frenético pela refeição frugal,
Numa piscada agarrou o pacote e o abriu
Estava faminto!
Enquanto eu pagava, disse ele:
“Espero encontra-lo numa situação melhor um dia”
Numa espécie de grito esperançoso
Querendo dizer:
“Olha, um dia a vida vai abrir um sorriso para mim,
Nem que seja um brando sorriso, e você vai me encontrar melhor!”
E eu assenti otimista:
“Vou encontrar sim, tenho certeza que melhor”
“Boa Sorte”! ...acenei indo embora
Em meio ao som dos meus passos
O jovem catador me chama em tom sutil
“Moço! Posso te pedir mais uma coisa?”
O fitei firmemente, estranhei um pouco
O que poderia ser, já havia lhe comprado o que comer
Nada me passava na cabeça
E então num gesto lento
Ou na lentidão dos meus pensamentos
Observando curioso o jovem catador
Acomodando com cuidado seu saco de lixo no chão
E todas as suas coisas
Disse:
“Posso lhe dar um abraço?”
Pensei
Um abraço!
“Claro!” respondi um pouco sem graça
Sem entender bem o que se passava;
Quantas pessoas lhe pedem um abraço
Não aquele abraço de cumprimento
Um abraço de amigo, de pai, de irmão
Como quem aperta um cão de estimação
O jovem catador, coberto de pó no rosto, no corpo todo
Me deu um forte abraço, apertado
Por longos e lentos segundos
Talvez minutos
Não me recordo de um abraço tão forte assim
Ele me apertava, num carinho indissolúvel
Um abraço entre grades
Entre dois mundos
Entre dois desconhecidos
Um abraço num grito silencioso e solene
Eu existo!
Estou aqui!
Tenho sentimentos!
Não sou uma sombra fantasmagórica flutuando
Pelas ruas
Sou como você, meu abraço é um abraço de gente
Meu abraço é apertado e quente
Igual ao seu!
Eu sinto fome como você!
Quero um abraço como você!
Alguém que reconheça que existo
Alguém que me olhe, que fale comigo
Que me dê um bom dia
Um boa tarde
Um boa noite
Eu quero existir também!
Pulsar também!
O jovem rapaz só queria um rufles
E um abraço
Um forte e caloroso abraço!
O abraço me ladeou até em casa
E quando cheguei
Olhei para o meu conforto
E fiquei pensando
Onde iria dormir o jovem catador
Se é que haveria uma cama,
Um teto, paredes
Em meu banho farto e quente
Não pude deixar de pensar
Onde iria tomar banho o jovem catador
Se é que haveria um banho
Alguém lhe daria um boa noite
Haveria aquele copo de água fresca na cabeceira
Me senti pequeno!
Naquele abraço
Troquei por alguns instantes
De lugar com o jovem catador
E se eu estivesse ali
E me sentisse uma sombra fantasmagórica
Vagando de caçambas em caçambas
Por um pouco de comida, implorando para ser visto
Ser visto!
Onde estaria eu se eu fosse o jovem catador
Onde estaria o jovem catador, se fosse eu...
Enquanto escrevo estes versos
Os olhos do jovem catador vão e vem nos meus pensamentos
Sinto o abraço me apertando
E gritando
Num silencio cortante
Eu existo


(da obra Saturno de Goya, 2019)
Alexandre Golovanevsky
Enviado por Alexandre Golovanevsky em 06/05/2020
Reeditado em 06/05/2020
Código do texto: T6939532
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