VIDA: O ETERNO RETORNO
Num ambiente insalubre, sobre um colchonete e em meio a um lençol rasgado e um travesseiro amarrotado e sem fronha, Antonio se entregava ao sono dos inocentes, e por que não dizer, dos felizes. Sim, se havia um momento em sua miserável vida em que era feliz, só podia ser enquanto dormia e sonhava com uma existência pelo menos digna. Ao longe, um galo insistiu em anunciar que o dia havia raiado – hora de Antonio retornar ao mundo dos pobres e miseráveis mortais. Como num efeito borboleta, o cantar do galo acionou o despertador que, feito bomba-relógio, explodiu o sonho de felicidade de Antonio. Um segundo depois, alguém bateu insistentemente na porta gritando a plenos pulmões, “Abra, abra essa droga de porta agora mesmo, seu cretino!”. Como se tudo isso não bastasse, na TV ligada provavelmente desde a noite passada, um repórter noticiava uma chacina ocorrida naquela madrugada bem perto dali – 7 pessoas brutalmente assassinadas por não se sabe quem –, e em meio a esse pandemônio, o chuveiro alagava o banheiro numa torrente de água de tornar o dilúvio um evento insignificante, enquanto a torneira da pia pingava a cada segundo, completando assim a sinfonia do terror.
Antonio, arrancado do seu sono de felicidade e trazido de volta ao Inferno de sua miserável vida, não sabia o que fazer primeiro – matar o galo, desligar o despertador, atender à porta, desligar a TV, fechar o chuveiro ou a torneira da pia? Esfregou o travesseiro na cara, como se isso tivesse o poder de lhe dar um insight – e deu –, fez uma coisa de cada vez, tentando manter a sanidade mental que ainda lhe restava.
Como se houvesse feito um acordo com o dono do Inferno – talvez prometendo-lhe a única coisa que parecia lhe restar, sua alma – Antonio percebeu que, de repente, o galo parou de cantar, o despertador parou de tocar, o chuveiro e a pia pararam de pingar. Restava apenas atender a porta, pois um louco ainda batia e esbravejava, porém, bem mais aliviado, gritou, “Já vai!”. Olhou o relógio, faltava pouco para as 7, naquela fatídica manhã de agosto. Ao abrir a porta, deparou-se com Seu Geraldo, o dono do muquifo em que vivia. “Hoje é seu prazo final, seu calhorda. Ou paga os aluguéis atrasados, ou vai pra rua sem levar nada. Só quando me pagar tudo, seu safado!”. Antonio quis retrucar, mas percebeu que não tinha nenhum argumento, então apenas disse, “Tudo bem!”.
“Tudo bem, uma ova!”, pensou ao fechar a porta, “eu tô é ferrado mesmo! Vida desgraçada!”. Era verdade, Antonio não tinha onde cair morto – nem vivo. Ele era um rapaz inteligente, cheio de juventude e força de vontade, mas sua existência era uma lástima. Seja lá quem tivera a triste ideia de jogá-lo neste mundo, certamente era o pior tipo de sádico que se poderia imaginar. Aos 27 anos de idade, sem parentes por perto e com os pais já falecidos, a vida na cidade grande lhe parecia um dragão cuspindo fogo num nordestino sem eira nem beira. Ele, então, juntou o pouco que tinha e saiu a esmo em busca de... sabia o Diabo lá o quê! Deixou para trás o pouco que conseguira como pagamento dos aluguéis atrasados. E aí, que já não era bom conseguiu piorar bastante.
Sem rumo certo, Antonio caminhou quase uma hora tentando planejar o que faria de sua vida dali em diante. Sentiu fome e sede, meteu a mão nos bolsos e encontrou uns trocados. Encostou numa birosca e pediu, “Um café e um pão sem manteiga, por favor!”. O atendente trouxe o café e, coferindo as moedas de Antonio, retrucou “Tudo bem, paraíba, o pãozinho vai de cortesia da casa pra gente assim como você!”. Antonio teve vontade de perguntar o que ele queria dizer com “gente assim como você”, mas refletiu que, na situação em que se encontrava, era melhor aceitar o que viesse de bom grado. Lembrou dos dias na roça, com o avô – de quem herdara o nome, Antonio Cornélius de Matos Silva –, do seu pai, da lida de sol a sol, da seca, do chão rachado, dos rostos enrugados, dos olhares perdidos no horizonte, dos olhos voltados para o céu, como se implorassem a Deus que se compadecesse, ao ver tanta dor e tristeza, e transformasse, como num milagre, desespero em alegria, sofrimento em prazer. Isso nunca aconteceu! Ele sabia bem como era aquilo e não ia agora olhar para o céu pedindo clemência a sabe-se lá quem. “Não tem ninguém lá! Pedir o quê? Para quem?”, foi sua conclusão.
Mas sua miserável vida ainda precisava de uma solução. Então, pensou em tudo que era capaz de fazer – suas habilidades, sua força, sua juventude... suas necessidades. Decidiu se embrenhar na multidão – “Quem sabe, no meio das pessoas apareça uma oportunidade!”, foi o que pensou. E mais, “Nem todo mundo tem tempo para fazer suas coisas nessa correria da cidade grande. Eu tenho, tenho tempo demais!”. E foi em frente. Tentou encontrar no rosto das pessoas algum sinal, algo que mostrasse algum sentido para ele, alguma chance. Logo viu uma senhora carregando vários sacos de compras com muita dificuldade. Ela tentava atravessar uma avenida de trânsito incessante, mas o sinal nunca fechava para os carros. Antonio, ainda que receioso, aproximou-se da senhora e disse, “Posso ajudá-la?”. A mulher temendo fosse um aproveitador, um ladrão, retrucou severamente, “”Não precisa, posso cuidar de mim mesma sozinha!” – mas ela não podia. Quando tentou atravessar, na hora em que o sinal fechou e os automóveis pararam, uma de suas sacolas se rasgou e parte de sua compra foi ao chão. Ela não sabia o que fazer, desesperou-se. Foi então que Antonio viu ali a sua grande oportunidade e, sem pestanejar, inclinou-se e pegou tudo quanto podia de uma só vez. Quando ia devolver as compras a ela, percebeu que a sacola estando totalmente rasgada, não poderia conter nada mais. Então foi até a mercearia mais próxima e, depois de explicar a situação, conseguiu duas sacolas novas e resistentes, nas quais depositou as compras da senhora. Como recompensa, recebeu de D. Celeste – era esse o seu nome - um belo sorriso, afável e cheio de gratidão. Ela disse, “Meu filho, você poderia carregar esses sacos pra mim? Em casa, vou recompensá-lo por tudo isso!”. Antonio quase não acreditou no que acabara de ouvir, tudo o que conseguiu dizer foi “Claro que sim, com muito prazer!”.
Ao chegar em casa, D. Celeste, muito agradecida, apresentou Antonio a seu filho, Aurélio, um rapaz muito bem apessoado, aparentando trinta e poucos anos. Ela contou o que acontecera minutos atrás e como ele a ajudara com toda a gentileza. O rapaz se comoveu com o relato e até se culpou por não ter ido com a mãe. Em seguida, convidaram Antonio para almoçar com eles. Antonio não se fez de rogado – não tinha por que se fazer, afinal de contas, que coisa melhor poderia lhe acontecer naquela tortuosa manhã. Aceitou prontamente dizendo, “Muito agradecido!”. Durante o almoço, Aurélio perguntou a Antonio o que fazia da vida. Antonio contou a eles sua saga do nordeste até ali, em busca de uma vida melhor. D. Celeste, então, perguntou, “Diga-me, meu jovem, o que realmente você gostaria de fazer por estas bandas? O que você sabe fazer?”. Antonio respondeu, “De tudo um pouco, e aprendo rápido qualquer coisa!” – era o que lhe restava dizer, e inteirou, “Sempre fui da roça, mas posso fazer outras coisas também, sei lidar com pessoas, e com plantas e animais, se for preciso”. Aurélio antecipou-se a sua mãe e, com um sorriso, replicou, “Ótimo! Nós temos um belo jardim aqui na frente e, nos fundos da casa, há uma variedade de plantas e árvores frutíferas, que creio você poderá cuidar muito bem. Ah, e um amigo para nossa segurança, que tenho certeza gostará muito de sua companhia!” – Aurélio se referia a Rex, um São-bernardo que tinham havia quase 8 anos. D. Celeste arrematou, “ O que nos diz, meu jovem?”. Antonio mal podia se conter dentro de si mesmo, mas se conteve, e disse, “Terei o maior prazer em cuidar de tudo pra vocês! Muito obrigado pela confiança!”. Enfim, a vida de Antonio ganhava um novo sentido, um futuro nunca antes imaginado agora paraiva a sua frente.
Na manhã do dia seguinte, o sol brilhou sobre o jardim e o pomar, sobre as plantas e as flores do jardim, sobre as árvores e todo o quintal, onde Rex e Antonio celebravam a amizade e a vida que nunca tiveram antes. À tarde, uma chuva fina trouxe pingos dourados. À noite, o silêncio e a escuridão desvendaram um céu pleno de estrelas, no meio do qual reinava uma lua prateada, cheia, imponente. Toda a vida, todo o universo, toda a natureza parecia dizer, “Isso tudo é teu, Antonio! Tu mereces isso!”.
Deitado sobre a grama do jardim, Antonio sentia sua cabeça dar voltas num mundo feito sob medida só para ele. Seus olhos vislumbravam galáxias insuspeitas, seu coração entoava uma canção inédita, tocada por uma orquestra de mil violoncelos, violinos, harpas, acordeões, trompetes e outros tantos instrumentos indistinguíveis. Não era um sonho, pela primeira vez em sua mísera vida, era tudo verdade, tudo aquilo era para ele. Antonio mal podia crer, mas lutava para se livrar, no meio de tanta alegria, de um pensamento traidor que martelava sua cabeça, destoando daquele momento pleno de felicidade. E apesar de lutar contra ele, por fim, deixou que ele escapasse. “Será mesmo isso tudo verdade?”. Tudo era muito; tudo era demais! Mas era tudo o que sempre quis. Antonio não queria sair daquele sonho de realidade e felicidade – ele merecia tudo aquilo. Sabia que merecia! Então ele se deixou levar...
E ali, sobre a relva macia, desfrutando daquele instante de plenitude e graça, eis que, ao longe, Antonio ouviu um galo cantar, o despertador tocar, um repórter na TV falar de uma tragédia, o chuveiro inundar o seu mundo e a pia a pingar de segundo a segundo. E como se tudo isso não bastasse, alguém esmurrava a porta e esbravejava. Antonio esfregou o travesseiro na cara, como se isso, por milagre, devolvesse a ele o seu mundo de felicidade, o seu instante glorioso. Porém, nada mudava. Então, ele gritou desesperado, “Já vai!”.