Bola Perdida
No campo de terra batida do bairro, muito novo ainda, descobriu que o drible, além de um momento mágico, era tudo de que precisava para se dar bem na vida, quer fosse para desvencilhar-se da marcação dos zagueiros e fazer o gol, quer fosse para fugir dos garotos maiores e cheios de más intenções... Ou ainda para sair incólume em seus primeiros delitos: pequenos furtos nas quitandas, incursões aos quintais dos vizinhos e os tombos dados no comércio local. Mas jamais admitiu ser driblado e quem o fazia quase sempre se arrependia.
Aos doze anos já era trombadinha tarimbado e cheio de ginga e, como na canção popular, Deus lhe dera pernas compridas e muita malícia, para correr atrás de bola e fugir da polícia. Antes de qualquer jogada de efeito nos campos de várzea, ou nos golpes aplicados, repetia para si:
--Olha a dibra!
À medida que se safava das confusões ou das pancadas dos zagueiros tornava-se mais esperto, ambicioso e principalmente, abusado. Dos pequenos furtos saltou para ações mais ousadas e assaltos à mão armada, da lata de thiner e de cola evoluiu para drogas cada vez mais pesadas. Corpo magro, esguio, pernas compridas e sorriso farto, um expert na arte da finta... Na bola e na vida! Os mais velhos bem que tentaram lhe aconselhar a dar novo rumo à sua vida, mas em vão:
--Deixa de malandragem e se emenda. Por que você não tenta o futebol? Leva tanto jeito...
Mas o futebol profissional não era para ele. Não para ele, indisciplinado por natureza, que não aceitava nenhum comando, desconhecia todas as normas e regras e era avesso às ordens de qualquer natureza. Não, ele nascera para o futebol de várzea e para a malandragem.
Aos vinte anos já era bandido famoso e temido no estado, com cabeça a prêmio, na polícia, na milícia e entre bandidos rivais; porém, sempre se safando na base do drible e se gabando:
--Não conheci zagueiro, nem bandido e nem polícia a quem eu não desse a dibra.
Mas, como não há bem que sempre dure e nem mal, que não se acabe, e sempre atrás de morro, tem morro numa pelada de final de semana num campinho de terra da favela, apareceu um moleque de seus quatorze anos, muito parecido com ele: corpo mirrado, pernas muito finas e compridas e aquele sorriso malicioso de projeto de bandido. E, de repente, o garoto de posse da bola bem na frente da torcida, pedala, ginga para a esquerda e para a direita, passa o pé sobre a bola e lhe dá uma caneta, passa a bola entre suas pernas; pára, sorri despreocupado e maliciosamente escapa da pancada que quebraria as perninhas de saracura três potes. Mais três adversários são driblados e o garoto marca um belo gol de cobertura, para delírio dos torcedores.
Após o jogo, o menino atrevido na mira. O soco na cara. O sangue escorrendo do nariz quebrado. O moleque no chão. Ele se volta senhor de si e do mundo, com “a suprema vaidade e o ego amoral dos grandes criminosos do mundo”; quando alguém lhe manda tomar cuidado, se vira: o garoto, ao contrário de que ele imaginava, já não está mais choramingando no chão e parte para cima dele como um marruá acuado. Ele tenta sair para a direita e o aço da lâmina lhe fere no flanco, para a esquerda e, novamente, é atingido: está na hora do drible de efeito, da jogada de craque – no campo e na vida -, da finta de corpo, da ginga. E grita:
--Olha a dibra!
Mas sequer se meche, desta vez a zaga do destino se lhe antecipou ao lance e roubou-lhe a bola da vida. Tem apenas o tempo de ver o garoto recolher o canivete, pedalar sobre uma bola imaginária e desaparecer, correndo, no meio da multidão...
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