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(Imagem do Google)

O batom de Catarina
 
Nos meus tempos de magistério, vinte anos foram dedicados aos alunos de sete a setenta anos em escolas do Sesi na grande BH. Iniciei com a Educação de Jovens e Adultos, alunos esses que trabalhavam de turno em grandes  empresas, dentre elas a FIAT. A afetuosidade era recíproca, quão educados, atenciosos e respeitosos esses aprendizes dos conteúdos propostos que não tiveram oportunidades de frequentarem as comunidades escolares quando mais novos. Em suas tão almejadas  formaturas, chegavam orgulhosos acompanhados dos familiares, apresentam-nos seus cônjuges, filhos, pais com os olhos marejados. A nós professores, restavam-nos estender-lhes o tapete vermelho, o Oscar já haviam conquistado pela trajetória de suas vidas.

Nesse percurso veio-me também o desafio de trabalhar com o "Projeto Jovem Cidadão" por três anos. Eram alunos jovens que se encontravam à margem da margem dessa nação. Alunos que chegavam à sala de aula escoltados por policiais e no soar do último sinal voltavam escoltados para o cárcere. Alguns não olhavam nos meus olhos quando queriam perguntar algo, as marcas nos corpos eram mais suaves que as chibatadas na alma. Doía-me o coração ao ver Gustavo, um jovem negro com o porte e a beleza dos manequins das grandes metrópolis mundiais, olhar desolador de quem em sua tenra idade não havia feito as pazes com a vida, sofrida, contida. Foi uma experência para mim, eu diria corajosa, dolorosa, pude ver de perto o Brasil real, cruel.  Passou-se mais uma estação, metaforicamente a definiria de inverno.

Houve uma época no Sesi em que nós professores íamos às empresas, havia as salas adaptadas para nos receberem. Num desses dias outonais, conheci "Seu Nelcino", meu eterno aluno de setenta anos à época. Enamorava-se das primeiras sílabas que lhes eram apresentadas, seus olhos brilhavam tais quais os eternos apaixonados, sentia-me grande e pequena , presenciando aquela cena, digna de um festival de cinema de Gramado. 
"Seu Nelcino" era do Norte de Minas e em uma de suas viagens à sua terra natal, trouxe para mim em uma marmita de alumínio, arroz com pato, feito por sua mãe. Faltaram-me as suas tão belas palavras para lhe agradecer, dei-lhe um abraço e disse-lhe que lembraria de sua afetuosidade por toda a minha vida.

Trabalhei com elaboração de provas, foi uma época de muito estudo, sou grata ao Sesi por mais esta oportunidade. Tornei-me mais seletiva nas escolhas dos textos para avaliações e mais cuidadosa no que se refere à elaboração dos enunciados de questões das avaliações.

Em escolas particulares os convites vêm como convocações, aceitá-los ou não, eis a questão.
O maior desafio estava por vir, substituição por oito meses em uma turma de alunos com sete anos de idade, que responsabilidade!
Confesso-lhes que foi árduo no início, quando soava o último sinal, encontrava-me sem energia alguma, exausta . O cansaço era amenizado pelos tantos beijos e abraços que recebia quando nos despedíamos.
Catarina com seus cachinhos de ouro era a mais vaidosa da turma, juntamente com o material infantil estavam o espelhinho e o batom em cima da carteira. Vez por outra , lá estava ela colorindo seus lábios de criança. Eis que um dia em plena primavera, fui atender seu chamado , espelho e batom caíram no chão e se quebraram. E agora? 
-Catarina,desculpe-me, já havia lhe pedido para deixar o seu espelho e batom na pasta!
Catarina não respondeu, os olhinhos estavam lacrimejantes, ficou  sem falar comigo.
Passou-se um tempo, levantou o rosto, disse-me   com a voz embargada:
-Professora, eu amava esse batom...
Do espelhinho quebrado de Catarina, consegui juntar os cacos,onde estão  refletidas  as lembranças do  olhar de Gustavo, a sapiência de "Seu Nelcino" e a ternura dessa doce menina...


 
Rosa Alves
Enviado por Rosa Alves em 15/09/2019
Reeditado em 28/08/2020
Código do texto: T6745803
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