Fazenda Cascavel
(Um conto quase Folclórico, baseado em fatos reais)
Quando Jurandir bateu a cancela, na divisa do prado com o quintal, já se fazia tarde, e Marisa veio a seu encontro:
— Apeie depressa, homem, pois tem uma cobra dormindo lá na varanda.
O vaqueiro firmou o pé no estribo e desceu do arreio; soltou o cabo do cabresto, deixou o cavalo a pastar a grama e exclamou:
— Uma cobra na varanda?! E cadê as crianças?
— Estão lá dentro, em cima da mesa da sala, morrendo de medo.
Assim agiam algumas sertanejas quando seus maridos estavam ausentes: empoleiravam seus filhos a fim de protegê-los dos perigos desses répteis assustadores. E havia muitas: crianças e cobras. No sertão era comum ouvir-se o silvo das serpentes e o medo das pessoas.
A mormaceira do verão propiciava, e elas apareciam com mais frequência. Às vezes surgiam nos quintais, debaixo dos assoalhos, dentro das casas e, possivelmente, nas camas e leitos infantis. Eram cobras diversas: cascavéis, corais, jiboias, jararacas, jararacuçus e até cobras-d’água dos riachos vizinhos. Vinham, sorrateiramente, à caça de batráquios ou pequenos roedores e atormentavam a vida bucólica das famílias.
As crianças já não saiam à noite, pelo menos enquanto recordassem a última aparição daquela bela e assustadora criatura a rastejar-se a seus pés. Mas, de repente, outras ressurgiam do nada, quase sempre nas horas e lugares inoportunos. Havia épocas em que apareciam de casais, ou de três a quatro, e assustavam mesmo.
Muitas mulheres corajosas faziam valer o provérbio: “Matar a cobra e mostrar o pau”. Outras ainda fugiam à regra e tinham razões para se medrarem. Afinal, segundo o Gênese, lá nos Jardins do Éden, Eva, a primeira mulher do mundo, fora seduzida por uma serpente. E, sem nenhum propósito esclarecido, umas das folclóricas superstições garantia: mulheres grávidas não poderiam matar cobras.
Então, já a caminho da varanda, Jurandir apanhou um cabo velho de enxada, aproximou-se do portão e chamou a mulher:
— Venha cá me dizer onde está essa cobra.
Marisa entrou atrás do marido, trêmula de medo, e apontou para o canto do alpendre:
— Ela está bem enrodilhada, lá no meio daquela tranqueira.
O marido olhou para esposa de disse:
— Acalme-se!... Cobra não corre atrás de ninguém. E para que esse nó na barra do seu vestido, mulher?!
— Ora! Você não sabe que serve para amarrar as cobras?
— Mas a comadre Sebastiana já não lhe disse que é perigoso? Desfaça isso e vá cuidar das crianças.
Essa outra superstição afirmava que, se uma mulher desse um nó na barra da saia ou do vestido, a serpente jamais fugiria. Mas, por contrapartida, isso deixaria a mulher vulnerável, e a “víbora” – traiçoeira – poderia hipnotizá-la. Portanto, só quando certa de que Jurandir já estava armado, Marisa desatou o nó, mas recomendou ao marido:
— Cuidado para não errar a pancada. Se vir que não acerta, não bata.
Pobres lagartos e camaleões. Nos campos e nas roças, não se deixava um vivente réptil transitar em paz, essencialmente uma cobra venenosa. E vejam que, para muitos sertanejos ignaros ou inocentes, toda cobra tem seu veneno e merece mesmo morrer, até mesmo a mansa cobra do milho.
Mas, na hora de sacrificá-la, havia muita apreensão, às vezes medo e pavor. Também, nesse momento crucial, a superstição gritava alto. Diziam-se que cobra mal matada é pior do que bem viva. Se alguém ferisse um cascavel, por exemplo, e mesmo assim ele conseguisse fugir, esse indivíduo deveria nunca mais trilar aquele caminho. Do contrário, correria grandíssimo risco. A serpente voltaria e, passasse o tempo que fosse, estaria ali à espera, a fim de vingar-se do seu malfeitor.
E havia lendas absurdas sobre tudo o que se rastejasse. Para vítimas de cobras “bicéfalas" e principalmente "acéfalas”, não existia soro antiofídico. Víboras furiosas já correra atrás de caçadores. Alguém fora surrado e repelido pela cauda de um lagarto gigante. A famosa sucuri poderia deglutir um novilho pantaneiro ou mesmo um pescador desavisado.
Por essas e outras, seria prudente não se ter complacência. Sucuris matavam-se a tiros, e não a clava. No entanto, para as demais, a pancada deveria ser certeira e moderada. Caso é que, se uma delas fosse decapitada, a cabeça peçonhenta poderia pular na pessoa e feri-la mortalmente.
Mas vejamos. Enquanto Marisa rezava com as crianças pelo sucesso da tirania, Jurandir aproximou-se cauteloso do entulho; acendeu a luz e removeu, minuciosamente, os cacarecos com a ponta da haste:
— Não há cobra nenhuma aqui, mulher.
— Há sim. Por que não há?
— Então é uma cobra invisível.
— É um cascavel. Eu ouvi o guizo dele quando fui apanhar a vassoura e levei um susto.
— Pois eu não estou vendo, nem ouvindo nada.
— Então você está cego, porque eu estou vendo daqui.
Todavia, o único ser mais semelhante a um ofídio naquele recinto era um velho e ruído cinturão de atanado. O treco estava encaracolado, exatamente no lugar para onde Marisa apontara a suposta serpente, entre a parede e a vassoura. Então Jurandir jogou o pau, ergueu o cinto com o cabo dela e perguntou:
— Não será esta a cobra que você viu, sua mofina?
A esposa olhou desapontada para o espiral de couro já nas mãos do marido. Mas, com uma argúcia repentina e serpejante, ela se justificou:
— Esqueça. E tire as crianças da mesa. A cobra já deve ter ido embora. Certamente, foi quando você me fez desatar o nó do vestido.
Jurandir, entrou na sala, desceu as crianças e voltou em busca do seu cavalo. A família veio atrás, ainda com certo medo. E Marisa advertiu um dos filhos que saltou à frente:
— Veja se olha aonde pisa, menino!
Mas até as aves tinham medo. E, de repente, ali no quintal, bem no meio da grama, a olharem de revés, as galinhas cacarejavam. E todos gritaram:
— É uma cobra!...
E não é que era mesmo um cascavel! Mas, enquanto as crianças tremiam de medo, e Jurandir procurava aonde havia deixado sua velha “arma”, a cobra, veloz como um raio, simplesmente desapareceu.
Não se pode garantir que essa seria a mesma que Marisa teria visto a dormir na varanda, se é que teria. O certo é que ali havia mesmo uma cobra, ou pior (ou melhor), havia muitas. A fazenda “Cascavel” tinha cobra até no nome.
Considerações:
Não se tratava de uma fobia, pois o perigo era real. Eu mesmo conheci uma familia que perdeu uma filha ainda bebê, picada no berço, por uma serpente. E hoje as cobras ainda são os animais que mais matam seres humanos pelo mundo afora.
Vejam:
."Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que todos os anos 125 mil pessoas morrem vítimas de picadas de serpentes venenosas. A mortalidade varia de acordo com a região do mundo. Na Europa, Estados Unidos e Canadá os acidentes são relativamente raros. Dos 8 mil envenenamentos ocorridos por ano, apenas de 15 a 30 resultam em mortes. Na África, por outro lado, estima-se que aconteçam pelo menos 500 mil ataques anuais, sendo 20 mil fatais. Mas o problema mais sério é na Ásia, principalmente em países como Índia, Paquistão e Birmânia. Nesse continente, morrem todos os anos de 25 mil a 35 mil pessoas por causa de picadas de cobras venenosas. No Brasil, dados do Ministério da Saúde revelam que ocorrem de 19 mil a 22 mil incidentes por ano, com cerca de 85 a 100 óbitos.
Quando o homem é a presa Cobras, elefantes, tubarões, tigres e hipopótamos são alguns dos nossos maiores “predadores”
(Um conto quase Folclórico, baseado em fatos reais)
Quando Jurandir bateu a cancela, na divisa do prado com o quintal, já se fazia tarde, e Marisa veio a seu encontro:
— Apeie depressa, homem, pois tem uma cobra dormindo lá na varanda.
O vaqueiro firmou o pé no estribo e desceu do arreio; soltou o cabo do cabresto, deixou o cavalo a pastar a grama e exclamou:
— Uma cobra na varanda?! E cadê as crianças?
— Estão lá dentro, em cima da mesa da sala, morrendo de medo.
Assim agiam algumas sertanejas quando seus maridos estavam ausentes: empoleiravam seus filhos a fim de protegê-los dos perigos desses répteis assustadores. E havia muitas: crianças e cobras. No sertão era comum ouvir-se o silvo das serpentes e o medo das pessoas.
A mormaceira do verão propiciava, e elas apareciam com mais frequência. Às vezes surgiam nos quintais, debaixo dos assoalhos, dentro das casas e, possivelmente, nas camas e leitos infantis. Eram cobras diversas: cascavéis, corais, jiboias, jararacas, jararacuçus e até cobras-d’água dos riachos vizinhos. Vinham, sorrateiramente, à caça de batráquios ou pequenos roedores e atormentavam a vida bucólica das famílias.
As crianças já não saiam à noite, pelo menos enquanto recordassem a última aparição daquela bela e assustadora criatura a rastejar-se a seus pés. Mas, de repente, outras ressurgiam do nada, quase sempre nas horas e lugares inoportunos. Havia épocas em que apareciam de casais, ou de três a quatro, e assustavam mesmo.
Muitas mulheres corajosas faziam valer o provérbio: “Matar a cobra e mostrar o pau”. Outras ainda fugiam à regra e tinham razões para se medrarem. Afinal, segundo o Gênese, lá nos Jardins do Éden, Eva, a primeira mulher do mundo, fora seduzida por uma serpente. E, sem nenhum propósito esclarecido, umas das folclóricas superstições garantia: mulheres grávidas não poderiam matar cobras.
Então, já a caminho da varanda, Jurandir apanhou um cabo velho de enxada, aproximou-se do portão e chamou a mulher:
— Venha cá me dizer onde está essa cobra.
Marisa entrou atrás do marido, trêmula de medo, e apontou para o canto do alpendre:
— Ela está bem enrodilhada, lá no meio daquela tranqueira.
O marido olhou para esposa de disse:
— Acalme-se!... Cobra não corre atrás de ninguém. E para que esse nó na barra do seu vestido, mulher?!
— Ora! Você não sabe que serve para amarrar as cobras?
— Mas a comadre Sebastiana já não lhe disse que é perigoso? Desfaça isso e vá cuidar das crianças.
Essa outra superstição afirmava que, se uma mulher desse um nó na barra da saia ou do vestido, a serpente jamais fugiria. Mas, por contrapartida, isso deixaria a mulher vulnerável, e a “víbora” – traiçoeira – poderia hipnotizá-la. Portanto, só quando certa de que Jurandir já estava armado, Marisa desatou o nó, mas recomendou ao marido:
— Cuidado para não errar a pancada. Se vir que não acerta, não bata.
Pobres lagartos e camaleões. Nos campos e nas roças, não se deixava um vivente réptil transitar em paz, essencialmente uma cobra venenosa. E vejam que, para muitos sertanejos ignaros ou inocentes, toda cobra tem seu veneno e merece mesmo morrer, até mesmo a mansa cobra do milho.
Mas, na hora de sacrificá-la, havia muita apreensão, às vezes medo e pavor. Também, nesse momento crucial, a superstição gritava alto. Diziam-se que cobra mal matada é pior do que bem viva. Se alguém ferisse um cascavel, por exemplo, e mesmo assim ele conseguisse fugir, esse indivíduo deveria nunca mais trilar aquele caminho. Do contrário, correria grandíssimo risco. A serpente voltaria e, passasse o tempo que fosse, estaria ali à espera, a fim de vingar-se do seu malfeitor.
E havia lendas absurdas sobre tudo o que se rastejasse. Para vítimas de cobras “bicéfalas" e principalmente "acéfalas”, não existia soro antiofídico. Víboras furiosas já correra atrás de caçadores. Alguém fora surrado e repelido pela cauda de um lagarto gigante. A famosa sucuri poderia deglutir um novilho pantaneiro ou mesmo um pescador desavisado.
Por essas e outras, seria prudente não se ter complacência. Sucuris matavam-se a tiros, e não a clava. No entanto, para as demais, a pancada deveria ser certeira e moderada. Caso é que, se uma delas fosse decapitada, a cabeça peçonhenta poderia pular na pessoa e feri-la mortalmente.
Mas vejamos. Enquanto Marisa rezava com as crianças pelo sucesso da tirania, Jurandir aproximou-se cauteloso do entulho; acendeu a luz e removeu, minuciosamente, os cacarecos com a ponta da haste:
— Não há cobra nenhuma aqui, mulher.
— Há sim. Por que não há?
— Então é uma cobra invisível.
— É um cascavel. Eu ouvi o guizo dele quando fui apanhar a vassoura e levei um susto.
— Pois eu não estou vendo, nem ouvindo nada.
— Então você está cego, porque eu estou vendo daqui.
Todavia, o único ser mais semelhante a um ofídio naquele recinto era um velho e ruído cinturão de atanado. O treco estava encaracolado, exatamente no lugar para onde Marisa apontara a suposta serpente, entre a parede e a vassoura. Então Jurandir jogou o pau, ergueu o cinto com o cabo dela e perguntou:
— Não será esta a cobra que você viu, sua mofina?
A esposa olhou desapontada para o espiral de couro já nas mãos do marido. Mas, com uma argúcia repentina e serpejante, ela se justificou:
— Esqueça. E tire as crianças da mesa. A cobra já deve ter ido embora. Certamente, foi quando você me fez desatar o nó do vestido.
Jurandir, entrou na sala, desceu as crianças e voltou em busca do seu cavalo. A família veio atrás, ainda com certo medo. E Marisa advertiu um dos filhos que saltou à frente:
— Veja se olha aonde pisa, menino!
Mas até as aves tinham medo. E, de repente, ali no quintal, bem no meio da grama, a olharem de revés, as galinhas cacarejavam. E todos gritaram:
— É uma cobra!...
E não é que era mesmo um cascavel! Mas, enquanto as crianças tremiam de medo, e Jurandir procurava aonde havia deixado sua velha “arma”, a cobra, veloz como um raio, simplesmente desapareceu.
Não se pode garantir que essa seria a mesma que Marisa teria visto a dormir na varanda, se é que teria. O certo é que ali havia mesmo uma cobra, ou pior (ou melhor), havia muitas. A fazenda “Cascavel” tinha cobra até no nome.
(FIM)
Considerações:
Não se tratava de uma fobia, pois o perigo era real. Eu mesmo conheci uma familia que perdeu uma filha ainda bebê, picada no berço, por uma serpente. E hoje as cobras ainda são os animais que mais matam seres humanos pelo mundo afora.
Vejam:
."Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que todos os anos 125 mil pessoas morrem vítimas de picadas de serpentes venenosas. A mortalidade varia de acordo com a região do mundo. Na Europa, Estados Unidos e Canadá os acidentes são relativamente raros. Dos 8 mil envenenamentos ocorridos por ano, apenas de 15 a 30 resultam em mortes. Na África, por outro lado, estima-se que aconteçam pelo menos 500 mil ataques anuais, sendo 20 mil fatais. Mas o problema mais sério é na Ásia, principalmente em países como Índia, Paquistão e Birmânia. Nesse continente, morrem todos os anos de 25 mil a 35 mil pessoas por causa de picadas de cobras venenosas. No Brasil, dados do Ministério da Saúde revelam que ocorrem de 19 mil a 22 mil incidentes por ano, com cerca de 85 a 100 óbitos.
Quando o homem é a presa Cobras, elefantes, tubarões, tigres e hipopótamos são alguns dos nossos maiores “predadores”
Fonte: revista Super Interessante